Monólogo para um cachorro morto

2008, 2010

Dez lâminas de mármore (155 × 260 × 5 cm cada) dispostas em duas fileiras com um vão de 20 cm. Na face interna de uma, texto esculpido do monólogo. Na face interna da fileira em frente, lâmpadas e reatores incrustados iluminam o texto. Na face externa de uma das lâminas, monitor de tela plana exibe filme em que o autor encosta o carro no acostamento da rodovia Raposo Tavares, São Paulo, e vai até o guard-rail onde há um cachorro morto. Coloca uma pequena base de mármore branco no chão e sobre ela um aparelho de som com os alto-falantes voltados para o animal. Liga o aparelho, entra no carro e vai embora. Enquanto os carros passam, o aparelho de som reproduz o texto “Monólogo para um cachorro morto”.

(Texto)
Poesia (Pausa), entre nós dois. Entre nós dois meu anjo, meu nojo, minhas mãos suadas e uma fenda. Vê, onde um corpo fendido recebe outro corpo e um terceiro corpo nasce deles, entre eles, feito de. (Pausa) Vento, mau-cheiro, delícia; sabão, carranca, monotonia. Assim: teu pêlo. Assim: a chuva. Ladrada. Ou carne lacerada, imagem dentro do meu olho. Meu olho. Nós dois, meu olho. Vê. Você aí. Aí, morto. (Mais alto) Permito que você morra. Permito que fique assim, morto. Permito que o carro passe. Permito o vento, a buzina. Estou doente. (Pausa) Doente porque vejo claramente, porque sei que à minha frente há o pedregulho. Ei-lo, pedregulho. Permito o pedregulho. Ei-lo, corpo lavado. Permito o corpo lavado. Ei-lo, retina ferida, latido meio fome, meio medo, meio noite imensa. Meu interesse é que não morre. Meu interesse gruda aqui, exatamente aqui, o meu olhar fixo, cavado. Mas se espalha depois pelos Shoppings, pelos enormes Shoppings, pelos saguões de aeroporto, pelas free-ways, pelos mercados unificados, pelos boletins informativos da Bolsa de Valores, pelas unidades de terapia intensiva dos hospitais, pelos condomínios de luxo, enfim, por todas estas áreas onde um cachorro não entra. Meu interesse olha para elas de olhos bem abertos – cegos e abertos. Bancos, centros culturais, chão azulejado das embaixadas, cenários de televisão. Para quê isso? Meu interesse olha pra isso (com ênfase) e passa. Vê? Passou. Mas em você se fixa, e cava. E quando o assento do meu carro me traz de volta ao fluxo de ar, vento e lata, ao núcleo de farol e de borracha, à cusparada da distância, ao mugido da quilometragem – à estrada, à estrada-, de volta à boca aberta à minha frente insistindo para que eu siga não sigo, não sigo não, não passo não, ao contrário. Vê? Eu paro. Paro e contemplo, porque deve ser assim. Você aí, eu aqui. Mesmo que meu dedo toque a tua pata há um quilômetro parado entre nós, como na estrada. Mesmo que minha voz, esta voz, penetre fisicamente os pêlos da tua (tua o quê? (pequena pausa, grita) carcaça!), mesmo que como uma pedra num lago imóvel o som da minha voz se espalhe pela estrada e por toda a vizinhança ao redor da estrada, mesmo que se transforme em quê? em (grita) samba! (mais baixo) de novo: (grita) samba! (mais baixo) mesmo que migre da minha garganta até o som do copo e do cabo da faca, dos dentes do garfo nas hachuras da borda do prato, mesmo que se hospede numa inútil semelhança com o que é belo, ou, ao contrário, num lamento contínuo, numa mulher chorosa, na lama do meu tímpano ou na música gloriosa, espalhando-se como um cântico, um (grita) canto!, uma (grita) batucada!, mesmo assim, ainda assim, por causa disso, com certeza, é inevitável que, e nem poderia ser de outra forma, não se deve esperar nada muito diferente disso, em suma, todos sabem, todos concordam, todos têm pleno conhecimento de que – entre nós dois teria de ser exatamente isso: (Pausa. Voz grave) distância (pausa), distância (pausa), a distância (pausa), uma distância que se mostra, para a qual se aponta, à qual alguém pode se referir como a alguma coisa concreta, palpável, em suma, (voz bem grave) esta distância aqui. (Pausa) Não canso de te encontrar onde não quero, dentro das minhas coisas, dentro de certas palavras, numa alegria súbita, no formato de uma nuvem, no gosto da saliva de outra pessoa, que beijei e bebi. Por que não largo você? Por que não abro as pálpebras e solto a tua imagem? Imagem, matilha aprisionada - saia daqui. Saia de trás das minhas pálpebras. Não te guardo mais. Flutue até que a próxima chuva te encharque, até que o excesso de luminosidade te apague. Vire corpo, imagem. Vire corpo completamente - casca, derme, pêlo, baba, plástico. Vire tigre. (Pausa) Estou alegre. Tão alegre que esqueço o nome do que me cerca. As ruas, pessoas, placas, cifras, apitos, avisos, preços, mercadorias. Esqueço o nome de quem há tanto me rodeia e seduz. Sou o sabão que tem mil nomes – mas esqueci os nomes todos de uma vez. Todos eles. De uma vez. Vejo o azul da substância pastosa, vejo as embalagens de plástico, a gôndola multicolorida onde fica depositada mas não sei, alegremente não sei o nome de mais nada, nem de ninguém. Esqueci todos eles. Graças a Deus! (Pausa.) Estive diante da grande massa de sabão no meio da grande massa dos enormes supermercados (como brilhavam de noite! mais que uma lua!), estive diante da massa conjunta de tantas ruas, inúmeras, diante da grande lâmpada de todos os postes com refletores de néon na ponta, da gosma de sabão e dos produtos já classificados em ramos diversos (“alimentação”, “higiene”, “limpeza”, “construção”), dos índices rigorosos de lucros assombrosos, dos discursos em feiras de marketing, estive na matéria primordial de todas as placas de inauguração de cada obra, de cada loja, de cada pensamento utilitário – estive ali mas esqueci completamente o nome do que fiz, dos produtos e das pessoas e dos lugares, das ruas e avenidas onde estavam. Esqueci, como um milagre. Esqueci tudo, alegre e absolutamente tudo, e me debrucei sobre você, trazendo no bolso um pequeno pedaço do sabonete gigantesco em que você se transformará, um pequeno pedaço da grande massa perfumada, ó cachorro amado. Esqueci os nomes das mercadorias mas ainda sei dizer: é noite, estou aqui, parado, meu medo, meu gesto, meu nome, meu cachorro, a carranca libertada da tarefa de morrer, de ser a carranca de um cachorro morto. Mas não sei teu nome. (Baixinho.) Não sei teu nome ainda. Posso dizer cachorro como quem lembra um substantivo masculino mas não sei teu nome, não sei como você se chama, não sei despertar a tua cauda ao pronunciar teu nome. Cachorro. (Pausa) Agora digamos, cachorro. Vamos imaginar, cachorro. Imagine. Digamos que eu te levasse agora mesmo para um terreno baldio, uma terraplenagem, um chão cheio de folhas e frutos de mamona caídos e de sementes de girassol, onde um cheiro de gasolina flutuasse, digamos. Eu incendiaria teu corpo, colheria cuidadosamente as cinzas que depois atiraria pela janela do meu carro (sim, cachorro, eu tenho um carro) nesta mesma estrada onde estamos agora. Ao saber disso, centenas de jovens maciçamente vestidos de blusas coloridas perseguiriam meu carro e me tirariam lá de dentro, cachorro, algemando meus pés ao guard-rail. Depois jogariam seus calhambeques mal cuidados, carros com mais de trinta anos de uso, em altas velocidades contra mim, me despedaçando como despedaçaram você. Cachorro, você faria o mesmo? Faria o mesmo que eu fiz? Faria o mesmo por mim? Incendiaria meu corpo num barranco, num chão com folhas de mamona? Cobriria meus olhos com dois girassóis enormes e botaria fogo? Colheria as minhas cinzas cuidadosamente? Cachorro? E quando reclamassem meu corpo, a família e os amigos enlutados reclamassem meu corpo, como descobriria meu nome? Que nome daria a eles? Que nome você daria? Qual o meu nome, cachorro?