Violência silêncio (Bruce Nauman)/1995

É difícil falar de um autor que tem como um de seus motes principais a fratura da idéia de estilo. Não que o trabalho de Bruce Nauman faça a apologia, pós-moderna e politicamente correta, da diversidade. Seu método para superar a coesão estilística se dá de outra forma: através de um excesso de singularização. É que muito do que se encontra ali soa como um modelo, modelo de como se anda, de como se está num quarto vazio, de como se caminha num corredor, modelos para túneis. Esses modelos, no entanto, não correspondem a conteúdos universais, e acabam servindo antes para tornar insuficientes (já que são modelos de algo) os objetos à nossa frente, singularizando-os através de uma espécie de idiotia. “Meu sobrenome exagerado 14 vezes verticalmente”, um neon azul de 1967, trata de uma ação simples, a assinatura de um nome, que sofre cinco especificações: é o sobrenome (primeira especificação) do autor (segunda) exagerado (terceira) catorze vezes (quarta) verticalmente (quinta). Só a ironia e o humor sobrevivem a este excesso de singularidade que não pode, evidentemente, desdobrar-se. Daí a dispersão estilística desses trabalhos.

Diante de tanta diversidade, o espectador talvez tenha a impressão que estes trabalhos se referem a um sistema que não percebe, como a pon- ta de um iceberg à montanha submersa. Esta espécie de arquitetura secreta tem provavelmente sua origem naquela desproporção radical entre aparência e significado inaugurada pelo “Grande vidro”, ou “Mariée mise a nu par ses celibataires, même”, de Duchamp. A obra plástica passa a ser a cifra de um movimento assimétrico a ela, uma máquina meio arbitrária de produzir significados, responsável, ao lado do gênio picassiano, pela expansão violenta do conceito de escultura e de arte em geral no século 20. Ao contrário, no entanto, da bula irônica de Duchamp, ou quase religiosa de Beuys, em Bruce Nauman esta arquitetura secreta é seu próprio corpo (entendido sempre como mecanismo), seu nome próprio, uma ação trivial, um jogo de crianças ou um paradoxo de linguagem, tornando quase impossível a criação de um significado, de um interior. Somos, portanto, continuamente expulsos das obras que vemos e dos significados que elas despertam e só nos restaria aquela pergunta meio cansada que tanta gente se fez diante de um Carl Andre ou de um Donald Judd: mas será só isto?

Estamos, portanto, no terreno clássico da arte norte-americana dos anos 60, que pode talvez ser definida como um grande movimento de negação do expressionismo abstrato e de seu artista maior, Jackson Pollock. O trabalho de Bruce Nauman é, neste sentido, tributário do ataque minimalista à idéia de forma, congelada pelo recurso à série, e do ataque pop à idéia de sujeito. O que é particularmente intenso em Bruce Nauman, no entanto, é que, embora tributário desta desmistificação da arte a que se propuseram a Pop e o Minimalismo (ao mesmo tempo em que se institucionalizavam cada vez mais), seu trabalho destila ainda uma prosa rarefeita e venenosa, preservando numa última trincheira o caráter alusivo da arte, para além das aventuras com o seu conceito.

Creio que Bruce Nauman conseguiu unir a uma preocupação intensa com a idéia de limite, do que pode ou não pode ser dito (em suma, uma reflexão sobre a linguagem), um pensamento original e quase único sobre a violência, recuperando paradoxalmente para a cultura norte-americana este tema tão presente no expressionismo abstrato. Cervos e cães esquartejados, palhaços que defecam, cadeiras invertidas em posição de tortura, casais que se matam, corpos tratados como maquinismos, atravessam todo o seu trabalho, numa espécie de retorno e costura em meio à dispersão estilística.

Se compararmos seus corredores claustrofóbicos vigiados por câmeras e suas salas triangulares com luz colorida com os “Penetráveis” de Hélio Oiticica – ambos são conjuntos de trabalhos que supõem a participa- ção do espectador e que foram produzidos, quase simultaneamente, entre meados e o final dos anos 60 –, veremos a diferença entre ser tratado como um corpo grávido cheio de possibilidades ou ser tomado por um rato num experimento de algum Pavlov ensandecido. Todo o esforço de Nauman parece ser o de expulsar a violência do âmbito do sujeito, afastando a gordura da angústia e os espasmos de potência para alcançar as coisas mesmas e a linguagem que nomeia estas coisas (e que, como mostram seus neons, é ela mesma uma coisa). Quer compreender a crueldade e o horror não como alteridade com a qual o sujeito se mede, mas com o desencanto de quem percebe como funcionam bem no mundo, naturalizados, entranhados em seus mínimos detalhes. Olhar um trabalho de Bruce Nauman não é incomodar-se com o “apenas isto” do objeto à nossa frente (como no primeiro Minimalismo), mas com o “apenas isto” do conteúdo violento e cruel que ele emite.

Para trazer de volta o contágio do mundo sem recorrer à paixão de um eu poderoso, creio que a estratégia de Bruce Nauman (e trata-se sem dúvida de um estrategista) é recuar a uma reflexão em segundo grau, trabalhando com os conteúdos do mundo já sintetizados, já tornados linguagem e hábito. Embora tributário, neste sentido, da Pop, a matéria trabalhada por Bruce Nauman não é o ícone explícito (latas de sopa Campbell, bandeira americana), mas a gag implícita, o ato falho, aquilo que somos sem ser, que sabemos sem saber, as frases que dizemos sem dizer, que se dizem através de nós.

Se seus trabalhos incomodam tanto, é por seu comércio poderoso com o modo como as coisas de fato funcionam. O que querem, aliás, antes de mais nada, é funcionar (este é seu único entusiasmo), prendendo o espectador em seu mecanismo, e são perfeitamente bem-sucedidos nisto. Camuflados na banalidade das coisas, deslocam e pervertem o modo como falamos, o modo como andamos, aquelas regiões onde nos sentimos seguros, e propõem, a partir de um catálogo de frases feitas, cenas triviais e movimentos banais do corpo, uma versão infernal daquilo que naturalizamos sem perceber.

Nestes trabalhos, tudo é tristemente repetitivo, num uso bastante particular da seriação minimalista. Afinal, se para a “minimal” a seriação livra o artista de tensões formais (proporção, acento, relação entre as partes etc.), para Bruce Nauman ela é, antes de mais nada, repetição no tempo, duração. Os neons, vídeos e algumas instalações que utilizam estes elementos duram insuportavelmente, transformando- se, um pouco como a música minimalista, em labirintos no tempo, de onde parece que não vamos sair nunca. Estamos condenados a um jogo idiota de repetições, que seria fácil recusar se não parecesse, ao mesmo tempo, tão familiar. O que nos pega desprevenidos é nossa adesão ingênua, quase instintiva, àquele inferno, onde entramos sem perceber, como se sempre estivéramos lá.