Um mundo perfeito (Paulo Pasta)/1996

A exposição de Paulo Pasta na Galeria Camargo Vilaça1 põe em xeque, com uma força que há muito não se via, a idéia da pintura como planta frágil, espécie de relicário de possibilidades extemporâneas. São nove quadros em que o gênero aparece, potencializado, como um fruto in-cendiado por dentro, até o limite físico do sabor, da cor e da beleza.

Numa formulação genérica, eles procuram reunir a feição retraída de artistas como Guignard e Volpi à evidência de um artista como Eduardo Sued – ou, em outro sentido, do americano Brice Marden. Este projeto paradoxal, que atrai para o seu conceito os pontos extremos do que a pintura brasileira produziu de melhor (ficando de fora, creio, a imaginação do gravador e desenhista Oswaldo Goeldi e do último Iberê Camargo), responde pela aparência dúbia dos quadros, ao mesmo tempo enlutados e belos, feitos de uma luz espessa, quase matéria, retratos de um mundo perfeito que é também, como no poema de Manuel Bandeira, o umbral da morte: “Quando a indesejada das gentes chegar [...]/ Encontrará lavrado o campo, a casa limpa/ A mesa posta/ Com cada coisa em seu lugar”.2

Esses são quadros literalmente difíceis de ver. Uma luminosidade exces-siva aproxima as diferenças de tom e de cor, como uma sobreposição impossível de sombras luminosas, coloridas, que torna difícil encontrar o ponto de foco. A cor não reflete, mas guarda a luz, o que torna os quadros iluminados desde seu interior. Com isso, aquela característica tão marcante nos grandes coloristas, a expansão aparentemente ilimitada da superfície do quadro, ganha a desaceleração de uma matéria que a difunde e refrata. Os quadros parecem amadurecer à nossa frente, bombardeados de dentro por uma luminosidade avassaladora. O que perdem em expansão ganham em intensidade. Daí que apareçam sempre por inteiro, reduzindo drasticamente o jogo entre a parte e o todo. Vemos suas partes, seus signos (colunas, arcos), mas é o todo do quadro que floresce e matura, cioso de sua integridade.

O aspecto que toma o centro da preocupação de Paulo Pasta não é o contraste entre as cores, nem a proporção entre a expansão da cor e a contenção da linha, mas sempre a intensidade da cor, presente tanto na cor pura, nomeável, quanto no tom mais remoto. Tudo se passa como se um sol poderoso iluminasse a cena (há uma cena) a ponto de torná-la quase invisível. Diferenças como luz e sombra, cor e tom, cheio e vazio, superfície e profundidade são rebaixadas até o limite, em favor da maximização da presença do todo. O quadro herda beleza e idealidade dessa equalização de suas partes no mesmo valor de intensidade extrema. Se o trabalho de Paulo Pasta (como ele diz em entrevistas) remete à memória, é a partir deste aspecto: o ato de lembrar, bem como o de imaginar, é em geral mais intenso do que seus conteúdos, precedendo e determinando a cena com um aroma genérico, uma totalidade prévia.

Há um outro ponto em seu trabalho que talvez fique mais claro a partir da obra de Amilcar de Castro. Nas esculturas de Amilcar, não há um espaço afirmado, prévio, a ser trabalhado por elas (como há em artistas como Richard Serra ou Robert Smithson). O mundo, de certa forma, não as precede. Daí que o espaço pareça entranhado no ferro, misturado ao minério, adormecido no peso. Ele como que pula para fora da peça quando esta é fendida e dobrada. Se por um lado a escultura, ensimesmada, perde expansão, de outro emana para sempre a potência do que traz guardado, chamando para si, como cria sua, o espaço em que está posta. Este entrelaçamento irremediável entre matéria e espaço (que talvez tenha sua origem numa separação não de todo realizada entre natureza e cultura) será posteriormente retomado, de modo muito diverso, por um número grande de artistas brasileiros – Iole de Freitas, Tunga e Waltércio Caldas, entre outros.

No caso de Paulo Pasta, o projeto é substantivar o espaço pelo valor de intensidade do visível (pela cor). Ele não deve aparecer como condição daquilo que está colocado nele. Deve estar, de certa forma, sobreposto e desabado em si mesmo, ele mesmo coisa, ele mesmo pedra, ele mesmo ar, como se o vão entre as garrafas de Morandi fosse cheio, coincidindo por inteiro com elas. 

O espaço no trabalho de Paulo Pasta não quer desagregar-se naquilo que está contido nele (sofrendo, passivo, seu exílio e seu enredo), nem ser condição abstrata, intocada, dos seres e das coisas. Deve ter as propriedades do que tem corpo, carne e concretude, sem sofrer no entanto as suas vicissitudes: apodrecimento, envelhecimento e história. Por isso um dos poucos elementos ainda não dominados pelo trabalho é um certo arcaismo arquetípico contido em colunas, arcos, jarros, templos. Por isso também o oco do trabalho, sua pergunta sem resposta, é justamente o que pintar. Afinal, sua vocação substantiva não pode ser saciada com substantivos. No entanto, pintar para Paulo Pasta continua sendo pintar algo – talvez uma mistura de ruína com cesta de frutas. Mas seria preciso que a ruína fosse, ao mesmo tempo, número e geometria; e a fruta fosse céu e natureza infinita. 

Talvez essa contaminação, regida pela cor, entre o espaço e as coisas, entre a condição e o condicionado, pudesse nos levar ao próprio Éden. Às vezes, penso que é a vocação destes trabalhos. Afinal, tiram sua feição de um direcionamento ambicioso no sentido do que é perfeito e sem nódoa, idealidade sem nome nem fissura, e constroem lenta e minuciosamente o testemunho do que viram. No entanto, basta deter o olhar nestas pinturas para sentir uma certa inquietude. Nossos olhos não acompanham a sutileza dos seus semitons. Estamos sempre aquém do que podemos ver, em dívida diante do que oferecem. Será que não somos supérfluos aqui? Não estamos sendo expulsos de tanta beleza? Beleza, aliás, que tem a tristeza do que nunca foi tocado, o cansaço de uma virgindade excessivamente prolongada, uma eternidade que pede quem sabe finitude e barulho. É esta aflição, este grão de impureza, que tira o trabalho das alturas e o traz de volta ao exílio e ao medo, onde já estávamos, e de onde saímos agora transformados. 

“Minuano” é o título de um trabalho realizado nas proximidades de Barra do Quaraí (rs), município na fronteira entre Brasil, Uruguai e Argentina. Encomendado pelo Centro Cultural Itaú, dentro do projeto “Fronteiras”, teve sua montagem completada em agosto de 2000. Trata-se de cinco blocos de mármore branco, pesando entre quinze e trinta toneladas cada um, com espelhos incrustados no interior de uma das faces. A instalação deste projeto é permanente. O texto que segue foi publicado no livro Psicanálise, arte e estéticas de subjetivação, organização de Giovanna Bartucci. Rio de Janeiro: Imago, 2002. As fotografias são de Nuno Ramos. 

1. Galeria Camargo Vilaça, São Paulo, 1996.

2. Manuel Bandeira, “Consoada”, Opus 10, 1952.