O ferro futuro (Amilcar de Castro)/1999

Amilcar de Castro, sem título, década de 90. 

O ano de 1994 foi cheio para as artes plásticas no Brasil, com duas bienais,1 exposições internacionais etc. Mas pouco ou quase nada se falou de Amilcar de Castro. Quando me pediram para escrever alguma coisa sobre o Modernismo, seus sucedâneos e a pertinência atual do projeto moderno, questões extensas demais para mim, logo a imagem de um de seus trabalhos me veio à lembrança, testemunho cabal, simples e definitivo da riqueza extraordinária deste projeto. 

É claro que toda obra conserva os vestígios e exigências daquilo que prometeu, mas um trabalho como o de Amilcar é, para nós que viemos depois, uma espécie de compromisso silencioso. Afinal, logo se percebe que algo de muito simples e definitivo foi resolvido ali, como um ovo de Colombo em que diversas oposições se dissolvem e que pode ser visto como uma espécie de pedra fundamental da arte brasileira. Matéria, plano e volume transformam-se uns nos outros com tamanha natura-lidade que parece que os vemos nascer sem intervalo. A noção de forma, assim, ganha aspereza, encarnação e peso, transformando a idéia de construção exteriorizada e cristalina de parte do Modernismo (penso em artistas como Calder, Brancusi ou Max Bill) em potência guardada, entranhada no peso da chapa, cheia de humores e de ferrugem.

Estes objetos selvagens, que guardam do Construtivismo a simplicidade substantiva, mas que aceitam sem conflito a adjetivação do tempo e da matéria, tiveram a originalidade de olhar para o futuro, numa época de horizontes generosos (final dos anos 1950), com o olhar arqueológico de quem quer movimento, mas sabe que tem os pés enterrados. Há em Amilcar uma espécie de anti-Pampulha, como se o ferro que arma o concreto e desaparece dentro dele saltasse para fora e cobrasse o seu momento. Pré-históricos e modernos, olham para frente e para trás ao mesmo tempo, prontos para as idas e vindas da história. Mas, se fincam como uma âncora sua presença calada no espírito aflito do tempo, não têm qualquer desprezo por ele. Afinal, não é à toa que a passagem do plano ao volume nas peças de corte-e-dobra se faz por meio de um talho que abre literalmente a peça ao mundo e a põe de pé, tornando-o parte integrante dela. Esta vontade de convivência, esta contigüidade com as coisas e a natureza é uma especificidade do trabalho de Amilcar, bastante diferente da altivez do Modernismo europeu. O corte e a dobra em suas peças têm uma “demora” avessa ao pragmatismo e ao tempo da indústria, que faz com que apareçam sem sobressalto, irmãs dos objetos casuais que as circundam, um pouco como se o tempo universal e contínuo os tivesse soldado a todos. Assim, o aspecto projetual, típico das linguagens construtivas, com sua ambígua mistura de autonomia e inserção nos processos industriais, acaba por ceder à modorra do peso, da rebarba do ferro e, quem sabe, a um aqui-agora arraigadamente mineiro.

Não me parece que esta contiguidade com o mundo se justifique a partir da institucionalização precária de seus trabalhos. Mesmo num museu internacional, cercado de todos os cuidados e avisos, eles percor-reriam novamente esta passagem tênue e delicada de simples chapas de ferro à condição de escultura. Teriam de nascer daí. Não se trata de um problema cultural, de falta de informação do público, mas de uma necessidade do trabalho: ele ainda parece matéria, guardando um pé no não-formado e na natureza que sua sofisticação plástica torna apenas mais precioso. Isto me parece claro no excesso sutil de matéria, de ferrugem, de peso, nas imprecisões de corte, rebarbas, desvios de contorno, no esforço para produzir a dobra que o movimento reflexivo da peça não consegue ou não procura dominar. 

Talvez uma comparação com o trabalho de Richard Serra explicite isto. Diante das peças de Serra, a própria arquitetura, praça ou rua que as abriga parece frágil, recente, feita de papelão, e o mundo estranhamente ameaçado, como o próprio eixo vertical-horizontal do espectador. São artefatos pré ou pós-históricos, capazes de abalar a orgulhosa auto-suficiência do capitalismo tardio. Por isto são muros de ferro, apoiados na própria curvatura ou na parede que os abriga, obstaculizando o trajeto e a vista do público. Em Amilcar, ao contrário, é a dobra (e a fissura) o eixo de tudo – é ela quem põe a peça de pé (espécie de enigma primário de toda escultura), e é ela também quem deixa o mundo entrar, multiplicando as vistas para quem percorre o trabalho. A dobra, a partícula de conexão, está no centro do pensamento de Amílcar, que opera assim a partir de uma espécie de troço primal, de “sono rancoroso do minério”,2 que no entanto se parte e se oferece a uma gramática.3 É este desdobrar da peça em mundo, este ir-e-vir da opacidade do peso à transparência do vão, que está no centro da poesia de Amilcar. Estes dois momentos aparecem, nas peças de corte-e-dobra, equilibrados numa tensão sóbria que as peças de corte reduzirão depois ao mínimo, transformando os vazios do primeiro grupo de trabalhos em fissuras, rebarbas onde a luz, mais do que a vista, penetrará. 

O poder formalizador do trabalho de Amilcar aparece por isto ao mesmo tempo como máximo e mínimo, já que matéria e forma se modelam e se apagam mutuamente. A dificuldade em que fica o espectador de decidir se está diante de um objeto sofisticado de cultura ou de um dejeto, um objeto primal, uma lâmina quebrada, é uma característica que hoje me parece particularmente rica nestas esculturas. O impulso construtivo pelo que é fundamental, com seu correlato de prospecção e teleologia, é capaz, no trabalho de Amilcar, de abraçar o que não pareceria formalizável: o tempo sem tempo da natureza e da matéria.

Além disso, são aquelas perguntas aparentemente um pouco tolas, tão ingênuas quanto generosas, mas centrais ao Modernismo, que parecem ainda acesas aqui. O que é arte? O que a arte pode? Qual o lugar da arte no mundo? O que separa os objetos de arte dos objetos comuns? Fica assim preservado um lugar estranho, esquerdo e interrogativo para o objeto de arte, que a institucionalização violenta do circuito de arte nos países desenvolvidos parece ter desfigurado sem remédio. O que é atual nos trabalhos de Amilcar é que estas perguntas se mostrem ao espectador sem fazer apelo a paradoxos, paródias ou curtos-circuitos culturais. Estão simplesmente ali, diante dele, na passagem construtiva do uno ao vário e do simples ao complexo, mas também na memória sem nome do minério. 

Novos Estudos, Cebrap. São Paulo, março 1999. 

1. Bienal Internacional de São Paulo e Bienal Brasil, ambas no Parque Ibirapuera, São Paulo.  

2. O verso é de Carlos Drummond de Andrade.

3. Ronaldo Brito, “Tempo e espaço”, in Amilcar de Castro. São Paulo: Takano editora, 2001.