Matthew Barney/2004

 O meio de arte norte-americano parece ter encontrado em Matthew

Barney uma expressão bem realizada do que vinha buscando desde o início dos anos 80 – um eu poderoso, uma imaginação soberana, uma ausência de assepsia ou de contenção, em suma: um artista que instaurasse nova-mente uma potência direta, para além das astúcias pop ou dos paradoxos minimalistas. Julian Schnabel, Basquiat, Jeff Koons representaram, cada um a seu modo, pequenas figuras soberanas, tentativas de escapar ao círculo traçado ainda nos anos 60 pela Pop e pelo Minimalismo, que obrigou a subjetividade ao exílio ou às operações diplomáticas, táticas e estratégicas, de forma a livrar-se da potência direta do Expressionismo Abstrato, vista então como ingenuidade. O trabalho de Matthew Barney, organizado explicitamente em torno de um Eu, de uma fantasia, de fixações e de manias, oferece um retorno poderoso a esta subjetividade – bem mais poderoso do que as tentativas anteriores. Assim, é um pouco com a força do recalcado que seu trabalho aparece, a partir de meados dos anos 90.1 O modo como este projeto se desenvolve, suas dificuldades e pressupostos, é o que vou tentar comentar aqui, tendo por base os cinco filmes do Ciclo Cremaster e o De Lama Lâmina (os quais pude ver apenas uma vez), e também as obras reproduzidas no extenso catálogo de sua exposição no Guggenheim, em 2003.

Antes de mais nada, é curioso como este retorno ao Eu, no trabalho de Matthew Barney, se dá na contramão de uma das principais características da subjetividade norte-americana, sempre orientada para um além, para um fora, para a amplidão externa. Desde Melville e Walt Whitman, passando por Frank Lloyd Wright, por John Ford, pelo Expressionismo Abstrato, pela Land Art, o Eu norte-americano se dirigiu ao imenso, à pradaria, ao tufão.2 A fusão entre as folhas da relva e as folhas da constituição norte-americana, cantar Abraham Lincoln com o mesmo pan-sexualismo que o levava a cantar o búfalo, a si mesmo e à catarata, estão no centro da intuição de Walt Whitman, que fez dessa imensidão uma espécie de mecanismo funcionando em tudo e por tudo. A grande exceção é Edgar Allan Poe.3 Nele, ao contrário, tudo é dentro – brocados, tapetes, mobiliário, vestidos empoeirados, taras familiares, gatos emparedados, catalepsia, coração pulsando na matéria. As personagens se arrastam num interior feito de castelos neogóticos, catacumbas e caixões, que a natureza emoldura mas não consegue penetrar.4 Este interior sem fim (presente de modo muito diverso, como veremos, em toda a poética pop) organiza fortemente os trabalhos de Matthew Barney – a própria paisagem da ilha de Mann é espelhada na tela, transformando-se assim em manchas semelhantes a um teste de Rorschach.

Há de fato diversos pontos de contato entre o trabalho de Barney e o de Poe – o gosto por charadas, a atração por símbolos, anagramas e seitas, uma monstruosidade de fundo. Diferentemente de Poe, no entanto, onde uma tara original governa por maldição a vida presente e grita, quando menos se espera, de dentro da parede ou do bico de um corvo (Nevermore!), em Matthew Barney esta cicatriz é convertida num sistema de apropriação paranóide. Não há nada fora do sujeito, porque tudo retorna, o tempo todo, a este sistema heráldico. Uma grande conspiração faz com que até mesmo a espuma da cerveja receba a marca deste sistema. Assim, por reiteração indefinida, estamos aprisionados dentro de algo – não num castelo cujas paredes ecoam nossa maldição, mas num sistema cuja potência reiterativa, ao seqüestrar minuciosamente o real, nos seqüestra junto. O que parece claustrofóbico em Matthew Barney não é resultado de uma característica ameaçadora que carregamos sem saber e que nos prende em sua teia (como em Poe), mas de algo que aloja-se docemente dentro de nós. No caso de Poe, as personagens são vítimas de seus atavismos; em Matthew Barney, estes atavismos tomaram conta de tudo, interiorizados a ponto de se transformarem numa espécie de visão de mundo (o aprendiz está sendo iniciado neste sistema atávico). É esta conversão do mundo numa mensagem privada, num sistema de espelhos, que parece às vezes claustrofóbica em seu trabalho (que chega a lembrar o “Memórias de um doente dos nervos”, de Paul Schreber, onde tudo, o tempo todo, faz sentido). Talvez por isso seja preciso nos determos um pouco num tema que organiza em grande parte este incessante sistema de retorno: o Narcisismo.

É curioso o lugar que o ensaio sobre o Narcisismo5 ocupa no pensamento de Freud. É nele que a oposição básica entre os instintos do ego, ligados à autopreservação (como a fome, por exemplo, ou seja: instintos não-sexualizados), e os instintos sexuais começa a fazer água. Esta dualidade, presente desde o início da teoria e resumida no verso de Schiller de que o amor e a fome movem o mundo, que Freud gostava de citar,6 cede à idéia de um amor sexual por si mesmo, que erotiza assim os instintos do ego. Com este amor narcísico, a libido fica sem um contraponto, sem um exterior, aproximando-se perigosamente das idéias de Jung. Essa grande perturbação na teoria dos instintos só será resolvida na segunda fase da teoria freudiana, bem posterior ao ensaio sobre o Narcisismo, em textos como “Para além do princípio do prazer” (1920) e “O ego e o id” (1923), através de um segundo dualismo, mais amplo e poético, e menos ligado à experiência clínica: aquele entre a pulsão erótica e a pulsão de morte. O texto sobre o Narcisismo representa assim a porta estreita que dá acesso à segunda fase da teoria, marcada pela especulação desimpedida e por aspectos cosmogônicos (Eros x Thanatos) mais aparentes. Esta estranha junção entre narcisismo e cosmogonia, tão significativa para o desenvolvimento do pensamento de Freud, comparece também no quadro paranóico7 em geral e, de modo mais surpreendente, num antecessor dos filmes de Matthew Barney, que vale a pena analisar de passagem: falo de A noiva desnudada por seus celibatários, mesmo, ou Grande vidro, de Marcel Duchamp. Ali também ocorre esta junção, ainda que permeada por uma ironia e um sentimento de distância estranhos ao trabalho de Matthew Barney. 

Marcel Duchamp é um destes artistas definitivos, cuja herança é difícil dimensionar. Mas acresce a isto uma característica especial: há uma bifurcação em seu legado, que parece orientá-lo para sentidos aparentemente opostos. De um lado, estão os ready-mades, que fazem já, desde sua origem, a crítica deste fenômeno que vem alcançando hoje em dia proporções inimagináveis – a institucionalização da arte. A partir dos ready-mades, o tônus da obra paradoxal, com toda a enorme gama de variação entre o espanto, a ironia, o cinismo e o sarcasmo, parece ter ingressado de vez na produção artística contemporânea, ancorado neste outro – a instituição museológica, a história da arte, os meios de comunicação de massa, a cultura. Mas há um segundo Duchamp, oposto a este – o do Grande vidro e do Étant donnée..., responsável pela formalização de uma energia de fundo, literária e externa à obra, inédita até então, que permitirá a inclusão de conteúdos que o trabalho exclusivamente plástico não era capaz de alcançar. Isto o transforma no antecessor de um artista tão diverso e antagônico quanto Joseph Beuys. Como reunir a crítica institucional dos ready-mades à aventura da noiva inalcançável (Grande vidro) ou de seu cadáver (Étant donnée...)? 

Como se sabe, Duchamp referia-se a seu trabalho como um rétard en verre, uma demora, ou atraso, em vidro. Esta idéia de uma paralisação, de um atraso, em oposição à velocidade picassiana, responde por grande parte de sua originalidade. Há uma anemia de fundo em tudo o que faz,8 um torpor constitutivo, desde a escolha do vidro como material à impotência sexual dos celibatários, à masturbação (o chocolate que os celibatários moem no Moinho) a que estão condenados, à necropsia voyeurista do Étant donnée... A própria compreensão do museu como instância inevitável da produção artística parece fazer parte deste quadro. O objet trouvée não é propriamente encontrado por um sujeito (no sentido do acaso surrealista), mas qualificado por uma instituição. 

Essa afasia subjetiva é talvez o principal motor do trabalho de Duchamp, e organiza tanto a cosmogonia bufa do Grande vidro e do Étant donnée quanto a ironia dos ready-mades. A obra de arte, a partir de Duchamp, passa a guardar para si uma energia que não se exterioriza (como o desejo dos celibatários não alcança nunca a noiva) ou, para usar o jargão psicanalítico, não se transfere ao objeto, mantendo-se numa fixação narcísica. Basta comparar as obras de Duchamp com as de Picasso, Brancusi ou Matisse: em Duchamp, a obra guarda um segredo, um inatingível, uma névoa quase indiferente ao espectador. E isso não se explica, creio, por ser portadora de uma idéia – ao contrário, ela só é portadora de uma idéia por compreender desde o início sua presença no mundo como fissura, como enigma. A obra de Beuys, também portadora de uma idéia, se impõe quase com violência àquele que se aproxima dela. Em Duchamp, a energia que a obra guarda é sempre maior do que a que ela emite, e isto está presente em seu trabalho desde o início, num quadro como Nu descendo a escada. Esta tendência entrópica inaugura uma longa linhagem na arte do século xx, à qual Matthew Barney se filia.9 

Mas se em Duchamp esta energia guardada sabe de si e dirige os próprios passos – daí talvez uma idéia de retorno, de ciclo, que anima a aventura da Noiva –, em Matthew Barney ela quer mostrar-se mais explosiva e desgovernada, tomando do Surrealismo um escândalo da própria presença e das imagens que veicula que é secundário em Duchamp. É porque a idéia de inconsciente, pouco significativa para compreender a obra de Duchamp (que tem entre as suas originalidades tratar da sexualidade sem referir-se ao pólo gravitacional freudiano), aproxima Matthew Barney do Surrealismo e portanto da psicanálise. Como nos filmes de Maya Deren,10 como em tantas obras de Ernst ou Magritte, os filmes de Barney deslocam e condensam imagens que pertencem a um mundo híbrido, misto de monstruoso e de humano, de masculino e feminino, de natureza e social, utilizando assim a estratégia surrealista de tornar contíguo (como nos sonhos) o que a civilização, a cultura, nossos hábitos e costumes haviam separado. Por isso, no Surrealismo como em Matthew Barney (mais uma vez), há tantos espaços interiores,11 caixinhas, jaulas, bolsos, esconderijos, dentro-das-paredes, embaixo-das-mesas, tabuleiros, por isso há gavetas na Vênus de Milo de Dali: a obra cava um espaço contínuo e permeável ao espaço comum, mas ao mesmo tempo separado dele, o que serve quase como uma definição do próprio inconsciente. 

Mas há uma diferença aqui, que nos leva talvez ao coração do trabalho de Barney – o inconsciente já foi tomado. Não há propriamente um Eu que lida com significações autônomas.12 Todo o imaginário é kitsch, em outras palavras, já circulou socialmente, pertencendo assim ao mundo desencantado da mercadoria e não ao patrimônio selvagem do sujeito. Não há nada nestes filmes que não reconheçamos antes de conhecer, na-da que não tenha chegado a nós sem antes sofrer apropriações diversas, já ambientado numa época, num estilo, numa autoria de segunda mão.13 

Mesmo Richard Serra e Norman Mailer fazem parte deste interior sem fim a que me referi antes, a saber: foram devorados pelo jogo cultural e ocupam, bem como suas obras, seu lugar ao lado das go-go-girls ou dos infláveis da Goodyear. Nada, nada foi poupado. Este é o pressuposto, a Waste Land quase metafísica de seu trabalho. Em vez de lamentar, no entanto, Barney transforma o culturalismo em natureza novamente, e essa é sua grande originalidade: elevar o Kitsch ao Sublime, fazer de marshmallow as cataratas de Niágara, interiorizar a tal ponto as latas de sopas Campbell que é como se emanassem livremente de um sujeito soberano. A potência paradoxal deste imaginário ocupado é a grande surpresa do trabalho de Matthew Barney.

Num texto famoso, de 1939, Clement Greenberg procurou distinguir entre a vanguarda em artes plásticas e o Kitsch.14 Para ele, a vanguarda copia os procedimentos da cópia, isto é, copia as operações formais que, nas artes plásticas, copiam o real; o Kitsch é a cópia dos efeitos desta mesma operação. Uma alcança a forma, purgando-se do conteúdo; o outro alcança o conteúdo, purgando-se da forma.15 Esta vida falsamente autônoma dos efeitos, própria do Kitsch na leitura de Greenberg, será a alma do mundo pop de algumas décadas depois, que liberaria a cultura daquilo que justamente anima ainda o texto de Greenberg: a hierarquia entre os produtos culturais, divididos entre altos (Vanguarda) e baixos (Kitsch). Daí uma certa alegria e leveza que caracteriza boa parte da produção dos anos 60, momento em que esta superação se firmou, desde as canções dos Beatles até um segmento significativo da Arte-Pop americana, como as instalações, performances e esculturas de Oldenburg ou as pinturas de Lichtenstein. Conforme este projeto de equalização entre as diferenças vai vingando, no entanto, ele ma-ta justamente aquilo de que se nutria. Pois é preciso que haja uma distinção razoavelmente clara entre o circuito do sabonete Brillo e o circuito da obra de arte para que a junção entre os dois solte uma faísca. Conforme esta operação se banaliza, a inteligência pop, por identificar-se demais com o funcionamento do mundo, perde potência. Mas é justamente este mundo indiferenciado que Matthew Barney vai tomar como matéria-prima. Fica, assim, de fora, por absoluta inadequação, o motor da melhor arte dos anos 60: a autoconsciência, irônica, como em Jasper Johns ou Warhol, ou formal, como em Judd ou Serra. Não há mais nada aqui para ser manipulado pelo produtor cultural através de ironias, paradoxos formais ou curto-circuitos culturais. Este jogo já foi perdido. Mas sobra, ainda, para Matthew Barney, a tentativa de dar uma sacudida selvagem nesse imbroglio arte-mundo, tomá-lo de novo como natureza, como um estar-aí incontestável, como matéria virgem para um novo canto whitmaniano, para um novo dripping pollockiano, desta vez feito de significados, imagens, caricaturas, ícones, mercadorias, informações. 

O projeto, no entanto, é paradoxal: como transformar em lava o que ao mesmo tempo deve manter sua identidade? Sim, porque reconhecemos tudo o que vemos na tela, e sem isto os filmes estariam fora de seu elemento. A estratégia aqui lembra de fato a dos sonhos – um deslocamento contínuo de cada detalhe conhecido para uma nova função, hermética. Esta é a primeira grande invenção do Ciclo Cremaster – preservar o mundo kitsch numa alusividade perpétua, obscura, que o mantém em suspensão. Este hermetismo paranóico – tudo se explicaria num outro nível – organiza formalmente o ciclo. Por causa dele, entre as diversas possibilidades da linguagem cinematográfica, Matthew Barney escolheu a montagem paralela, utilizada de modo rebarbativo e pedagógico. Há um enquanto isso que atravessa todo o trabalho e faz com que aquilo que vemos seja supostamente explicado pelo que acontece paralelamente – como a coreografia das go-gos sendo criada pelas uvas que caem do salto da deusa pornô Goodyear, ou a vida do assassino Gilmore sendo traçada pela história de seu avô Houdini. Toda ação, tudo o que se vê, se de um lado está imerso no aqui-agora próprio de seu destino kitsch (de produto preso, como queria Greenberg, à aparência sem forma ou ao efeito sem causa), de outro aparece, paradoxalmente, como resultado de um nível oculto de significação, insinuado constantemente pela montagem paralela. O eu-aprendiz está ali justamente para ter acesso a esta outra coisa, para descobrir a passagem até a câmara secreta que dá ao mundo kitsch uma certa espessura – ainda mais que, devido à redundância da montagem paralela, uma idéia de causalidade se faz presente o tempo todo. Mas quando entramos na câmara secreta vemos que também ela é já linguagem socialmente consentida e não fundamento, também ela é kitsch, ou seja, já circulou, tornando-se reconhecível por todos. O mistério do mundo portanto já foi maculado por sua própria circulação, precisando de um novo fundamento, e assim interminavelmente. Como num jogo de bonecas russas às avessas, o ciclo de Matthew Barney precisa aumentar seu alcance em ações fundantes cada vez mais genéricas e obscuras.

Daí que a imagem do desenvolvimento sexual, que empresta um de seus termos para servir de título ao Ciclo, seja tão apropriada. Afinal, origem e término de tudo, pode ser requisitada a qualquer momento, como um deus ex machina que, ao invés de resolver enigmas, os multiplicasse.16 Mas não devemos nunca perder de vista, neste trabalho, que sua originalidade (e seu limite) está em tentar fundar o que não tem fundamento, em inverter a platitude pop, em valer-se de todo um ciclo wagneriano para injetar potência numa deusa pornô ou em dois Mustangues num posto de gasolina. Na ausência dessa tralha, dessa oposição entre o sistema sem fundo e seus elementos paradoxalmente rasos, o trabalho derrapa. É o que acontece, a meu ver, com o filme feito no Brasil, De lama lâmina, bem pior do que a série do Cremaster.17 Lá, ainda que participantes de um ritual (o Carnaval de Salvador), não estamos dentro da alusividade sem fim de tudo a tudo, própria do Cremaster, mas numa festa exótica, que guarda para si as suas propriedades. Aliás, o melhor do filme parece ser a idéia de elemento infiltrado, ou seja, o alheamento entre a ação de Barney no interior do gigantesco trator e a festa lá fora. Mas por isso mesmo, por falta de contaminação entre as duas ações (apesar da montagem paralela, a idéia de causalidade, que atravessa o ciclo inteiro, não funciona aqui), falta resistência ao sistema, que pela primeira vez aparece inteiro, nu e nítido à nossa frente. Trata-se de uma alegoria banal, que vai do barro informe à geodésica modelar, passando pela cópula entre carne e máquina. É realmente muito pouco e se os elementos externos são impressionantes – barro, festa, carro alegórico, lâminas de um trator descomunal –, a imaginação é que parece feita de isopor. No Cremaster, ao contrário, não temos nunca acesso direto ao desenho do sistema,18 o que livra as personagens, situações e elementos plásticos de sua banalidade kitsch sem no entanto impor-se completamente a eles. É do fracasso eterno dessa operação fundante que o Ciclo retira seu fôlego, pois precisa recomeçar novamente a cada tentativa. Parece haver um moto perpétuo aí, que se de um lado reproduz a circularidade sem fim do mundo das mercadorias, de outro coloca esse mundo em suspensão, já que faz com que seus elementos mais banais, cada detalhe, cada botão, passem a pertencer a outro estamento, para além da circulação imediata. Essa potência de seqüestro, seu alcance minucioso lá onde já não podíamos esperar que chegasse, faz muito da riqueza do Ciclo. 

Os materiais que Matthew Barney utiliza fazem parte dessa operação de deslocamento contínuo e detalhado do real. Sal, vaselina, acrílico, plástico injetado, até mesmo abelhas, infiltram-se nos objetos mais banais. Mas, ao contrário de um artista como Beuys, a matéria aqui aparece antes como uma ambigüidade inerente ao objeto (que ganha com ela o contraste de uma interioridade orgânica), e não como um pedaço de natureza incrustado, lembrando, no fundo, a xícara famosa de Meret Oppenheim. A matéria não ameaça propriamente os objetos-mercadorias, apenas particulariza sua origem, cravando uma espécie de assinatura no que seria anônimo. É bom lembrar que quase sempre a vaselina de Matthew Barney está congelada, isto é, falseada em sua principal característica – o ponto de fusão extremamente baixo –, de forma a ser utilizada como material fixo, resistente o bastante para modelar a aparência do mundo. Se Beuys converte o mundo em matéria, o piano em feltro, Barney converte a matéria em mundo, a vaselina em aparelhos de ginástica. Se a banha ou o mel em Beuys solicitam do processo de produção contemporâneo, tomado em sua integridade, que se transforme numa usina cosmogônica à altura de um cervo da Floresta Negra ou de uma abelha rainha, o estádio de sal de Matthew Barney encaixa-se apenas em sua própria história – é lá que o prisioneiro será executado e preservado em sua esterilidade. No fundo, os materiais em Matthew Barney fazem parte deste simbolismo sem universalização que serve de fundo a todo o seu trabalho. Daí que sejam filmados, o que coloca de saída uma distância, um enfraquecimento de sua presença. Também à diferença das performances, não há aqui uma cena original, um evento fático que a fotografia depois reproduz (como o professor Beuys ensinando arte a uma lebre morta: isto de fato aconteceu, no dia tal, a tal hora). O que vemos foi feito apenas para o filme. Não há portanto ação propriamente, mas execução de um roteiro – as personagens do filme não agem, mas representam. O Richard Serra duplicado que joga agora vaselina no plano inclinado do Guggenheim perdeu a resistência do material de seu trabalho original, feito com chumbo,19 e também de toda a problemática inserção no mundo que sua obra pressupunha em 1969. Em vez de jogar o material contra um ângulo concreto, entre chão e parede, que lhe resiste e dá forma (num misto de action painting com literalidade minimalista),20 agora deixa que escorra pela espiral sem fim do Guggenheim, convertida não no ícone mais perfeito da expansão espacial, própria da arquitetura orgânica de Frank Lloyd Wright, mas de retração temporal: um tobogã-ampulheta. A vaselina de Barney está para a banha de Beuys como a idéia de representação em filmes para a idéia de ação embutida em uma performance. Uma se toma por modelo de algo; a outra, serve a um produto artificial e auto-suficiente, no limite auto-explicativo: o filme. A unidade de atuação deixa de ser o mundo e passa a ser a película. Estamos fora, afinal, daquela literalidade que marcou profundamente a arte dos anos 1960 em diante. 

* * * * 

Os filmes de Matthew Barney procuram converter as inúmeras formas do kitsch em parte de um mecanismo interior. Por isso, tudo ali retorna infindavelmente. O sentimento paranóide de fundo talvez seja o preço que se paga por isso: o mundo hoje só retorna para o alcance do sujeito quando convertido em mania, em ausência completa de distância ou de fissuras – em identidade absoluta. Por isso esta ambiciosa escato-logia, que tem em seu centro uma teoria da sexualidade, não consegue nunca abandonar seus ícones – leva-os consigo a toda parte, como uma criança com seus bonecos. Conforme o aprendiz vai galgando os ciclos do grande mistério,21 que deveriam fundamentar aquilo com que se deparou em sua procura, encontra apenas novos elementos kitsch, à espera de fundamentação. Além disso, o fundamento não interage verdadeiramente com aquilo que fundamenta – a deusa do balão da Goodyear não interage com as dançarinas, apenas repete o processo das uvas interminavelmente. Daí que os momentos mais belos do ciclo sejam aqueles em que essa derrota é de alguma forma confessada, como na seqüência em Budapeste, no longo desencontro entre a imóvel Ursula Andress e seu clown saído de algum Watteau, ou na impressionante cena em que Gilmore morre junto com seu touro na arena de sal, num duelo em que os oponentes se “apagam” mútua e simultaneamente. É que quando a entropia de fundo é tematizada (isso está totalmente ausente, por exemplo, no De lama lâmina), o trabalho expõe a sua face mais secreta – a de um cansaço de fundo, como alguém condenado a repetir bem alto o próprio nome a cada vez que se interessasse por alguma coisa. 

Assim, o grande canto americano, selvagem e exteriorizado, que Emerson solicitava antes mesmo que Whitman o escrevesse,22 teve de transformar-se em charada para preservar-se minimamente. Se o pró-prio canyon virou produto de supermercado, embalado e disponível a cada esquina, é preciso recobri-lo novamente com uma espécie de segunda funcionalidade, de fundo esquizofrênico, para livrá-lo da prime-ira. Encolhido e pressionado por todos os lados, o artista conspira assim por um duplo do mundo, onde ainda é soberano. 

O Estado de São Paulo, 23 abril 1995; Amilcar de Castro, Ronaldo Brito (org.), São Paulo: Takano, 2001. Para esta versão, alterei bastante o texto.

 1. No caso de Barney, o principal modelo negado parece ser Bruce Nauman, com seus vídeos sem qualquer montagem, filmados como câmeras de segurança, com sua corporeidade literal, instrumentalizada por processos pavlovianos de controle. A influência de Nauman sobre a cultura norte-americana dos anos 70 até os dias de hoje ainda está por ser avaliada. O “Cremaster” de Barney parece ser das primeiras obras filmadas a escapar definitivamente desta influência.

2. Mesmo as epifanias de Emily Dickinson, que têm uma espécie de pequeno infinito em seu centro, podem ser vistas nesta chave.

3. E, num sentido muito diverso, Henry James. 

4. “A obsessão da América pelo exterior levou Poe a imaginar seus heróis trancados em caixões de defunto, catacumbas e salas espessamente acortinadas, como que para escapar do estardalhaço do temperamento nacional”, Paul Zweig, Walt Whitman – A formação do poeta. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p. 254. 

5. Freud, À guisa de introdução ao narcisismo. São Paulo: Imago, 2004 [1914]. 

6. Peter Gay, Freud, uma vida para o nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 317. 

7. Para Freud, impedimento à satisfação – não permaneceu nos objetos na fantasia, mas recolheu-se ao Eu. Nesse sentido, o delírio de grandeza é um modo de lidar psiquicamente com este volume de libido recolhido ao Eu”, À guisa de introdução ao narcisismo, op. cit., p. 106. “Uma percepção interna é suprimida e seu conteúdo, após sofrer certo tipo de deformação, ingressa na consciência sob a forma de percepção externa”; por isto, em Schreber, “seu ego era mantido e o mundo sacrificado”. Freud, O caso Schereber. São Paulo: Imago, 1998, pp. 81 e 85. 

8. O título de um de seus trabalhos é o quase palíndromo Cinéma: anémic. No Grande vidro, a litania dos solteiros diz: “Vida lenta/Círculo vicioso/Onanismo”. Ver também entrevista citada em Otávio Paz, Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 1997, p. 54: “A produção de uma época é sempre sua mediocridade. O que não se produz é sempre melhor que o produto”. 

9. Pode-se dizer que diante de obras como estas o espectador está sempre, de alguma forma, em déficit. No caso de Beuys, em déficit diante de uma espécie de Doutrina; em Duchamp, em déficit diante de um eu astucioso e autoconsciente, como um Cogito (ironizo, logo existo) lutando com seu Gênio Maligno (o Museu, o espectador, a História da Arte); em Matthew Barney, em déficit diante de um sistema cabalístico de conteúdos que pressupõe uma iniciação prévia. 

10.Ver “The Anatomy Lesson”, texto de Arthur C. Danto sobre o “Cremaster”, que pode ser encontrado na Internet.

11.Rosalind Krauss, Caminhos da escultura moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1988, cap. 4.

12. Pode-se falar aqui num antilacanismo de princípio: o id não é nunca Significante e sempre Significado.

13. Comentando o trabalho de Matthew Barney, Rodrigo Naves sugere uma oposição entre “a multiplicidade desse mundo sem origem e fundamento e que se afirma apenas por repetição – o mundo das imagens pop” e “a unidade intensa de uma corporeidade que se dissolve noutra, a integração fundada na diluição das diferenças: o corpo eróti- co”. “O erotismo pop de Matthew Barney”, O Estado de São Paulo, 28 novembro 2004, Caderno Aliás. Como o leitor perceberá, utilizo, ainda que com outros termos, oposição semelhante em meu raciocínio.

14. “Vanguarda e Kitsch”, in Glória Ferreira e Cecília C. de Melo (orgs.), Clement Green- berg e o debate crítico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997.

15. “Se a vanguarda imita os processos da arte, o kitsch, vemos agora, imita seus efei-- tos”, Clement Greenberg [...], op.cit., p. 37. É possível tirar do texto de Greenberg os seguin- tes pares de opostos entre Vanguarda e Kitsch: imediatez, efeito, síntese (Kitsch) contra reflexão, causa e análise (Vanguarda), pp. 35-36.

16. Textos como o de Nancy Spector, “Only the perverse fantasy can still save us” (Matthew Barney. Nova York: Guggenheim Museum, 2003), que evitam introduzir qualquer dissonância crítica no mundo auto-referente de Barney, são a demonstração viva deste mecanismo de alusividade infinita.

17. “Como para Barney o Brasil não é pop, e sim animal, resta apenas uma força em campo e, portanto, uma ‘síntese’ pobre, sem partes e articulações. Sem dúvida, essa compreensão do Brasil fala muito dos limites da visão que o artista tem do mundo, como se acm não fosse tão ou mais pop que George W. Bush”, in Rodrigo Naves, “O erotismo pop [...]”, artigo citado.

18. Podemos estudá-lo, ler as entrevistas de Barney ou o texto de Nancy Spector no catá-- logo da exposição do Guggenheim, mas sempre estaremos confusos, sem dominar com- pletamente seu funcionamento. Esta situação é fundamental para o sucesso do trabalho.

19. Trata-se de Peça moldada, 1969, trabalho realizado por Serra em Nova York, para a Leo Castelli Gallery.

20. É interessante lembrar que Beuys também utilizava os ângulos das paredes para formatar seus cantos de banha.

21. Arthur Danto faz em seu artigo uma interessante comparação entre o “Ciclo” de Barney e A flauta mágica, de Mozart.

22. Ver “The poet”, ensaio publicado em 1844 (a primeira edição de Leaves of  grass,  de Whitman, é de 1855). Ralf Waldo Emerson, Self-reliance and other essays. Nova York: Dover Publications, 1993.