Deriva (Fábio Miguez)/2003

Sem renúncia, sem deslocamento, sem estratégia, sem se queixar nem remoer a própria ferida, a pintura está inteira nas pinturas de Fábio Miguez. Parece ser sua tarefa, aliás, mantê-la assim, boiando em sua potência, como um bicho que hiberna e armazena energia enquanto dura o inverno. Algo aqui parece reduzido a uma intensidade mínima, mas onde toda uma vida está guardada. Gosto de pensar em de Kooning como a natureza dessa vida, sua fonte mais profunda, seu princípio sempre renovado. Pois em nenhum outro pintor moderno a pintura celebrou com tanta força o poder de seu instante, o arrastar da sua tinta para lá e para cá, o branco que não se sabe bem de onde brota mas que segue brotando o tempo todo, iluminando por igual, como uma tarde fria de junho, tudo o que a pincelada conduz. É isto o que está guardado nestas telas de Fábio Miguez – uma espécie de celebração invernal da vida (e da pintura), que recomeça. Por isso gosto de pensar nelas (literalmente) como o avesso de uma tela de de Kooning, como aquilo que teria, sob as imensas pinceladas, vazado para o outro lado da lona ou do linho – para lembrar que por trás de sua anemia aparente há a confiança e a ambição norte-americanas, pulsando.

Pois é através de um pulso, um batimento de fundo, que todo o traba-lho de Fábio Miguez vai se organizar. Sendo sucinto (talvez sucinto demais), e procurando traçar um pequeno circuito biográfico-cultural, ele começa, como quase toda a nossa geração, comprando a “volta à pintura” (início dos 1980) e um desejo retórico de expressão. No entanto, para um espírito refinado como o seu, quase nada havia ali para se identificar – natural, portanto, que ainda antes de completar seu primeiro passo, o trabalho sofresse uma espécie de crise iniciática que, desdobrada em duas frentes, parece ter-se depois organizado da seguinte maneira: de um lado, através de uma tentativa de converter a distância e o paradoxo pop/minimalistas (especialmente Brice Marden e as “Bandeiras” de Johns) em sentimento e, de outro, por uma conversão ao Brasil. Foram os trabalhos de Mira Schendel, de Volpi, de Iberê Camargo, de Guignard, de Goeldi e de Jorge Guinle que ofereceram, em sua figura difusa, um lugar possível para sua pintura. Foi seu misto de extrema fragilidade e extrema veracidade que pulou para dentro dos quadros de Fábio, como um poderoso pólo magnético.

Assim, o impulso ingênuo por uma pintura total, próprio da “volta à pintura” dos anos 1980, que utilizasse todos os seus recursos – pince-lada, cor, matéria, figuração, escala generosa –, ganha agora uma distância (aquela produzida pela Pop e pelo segundo Minimalismo, mas transformada, no limite, em lirismo) e uma fragilidade brasileira de propósitos e de fatura. Acho que a ambivalência desta autocrítica de juventude ainda hoje alimenta o seu trabalho, e poderia ser resumida assim: 1) Como continuar pintando sem deixar propriamente nada de fora (como ser fiel a de Kooning); 2) Como transformar a distância e o paradoxo do Minimalismo e das bandeiras de Johns em sentimento, em tristeza e solidão; 3) Como entender a dificuldade de finalização brasileira, nossa dissipação constitutiva, nossa hesitação diante da própria figura, como possibilidade poética. 

Uma vez lançada a pergunta pelo alcance do trabalho, pelo território de suas identificações, ele estava pronto para propor a sua diferença poética, para constituir um lugar de onde olhar. Não sei se exagero, 

mas considero Deriva (um conjunto de fotografias tiradas em Ubatuba, em 1993-94) este lugar – o momento verdadeiramente fundamental na constituição deste ponto de vista, e uma espécie de guia poético para percorrê-lo. Trata-se de uma dezena de pares de fotos em preto e branco, emoldurados conjuntamente. À esquerda, ondas estouram contra as pedras, produzindo diferentes tapeçarias de espuma (um pouco como na cena do naufrágio em Limite, de Mário Peixoto); à direita, a neblina engole o mar, ilhas ou montanhas, em graus diferentes de opacidade e espessura. Cada foto pertence a uma série diversa em sua monotonia – a espuma varia em seu desenho sempre igual, a neblina fica mais ou menos espessa, mas é sempre neblina. Temos dois ritmos diferentes, postos lado a lado – o batimento da onda e o abraço lento da chuva e da bruma. Estes dois ritmos como que se imobilizam, já que não é possível compará-los. Embora tudo esteja se movendo, não há movimento aqui; tudo se modifica, mas parece fixo, constante. Os dois ritmos – da onda estourando (mais veloz), da neblina aumentando ou diminuindo (mais lento) – neutralizam-se por contigüidade, eternizando-se. Há um batimento que não funciona, que ecoa mas não perturba; uma diferença que não difere, mas permanece. O lugar, dado pelo recorte das fotos, embora feito de espuma, de vapor e de gás, acaba ganhando uma fixidez quase geológica – não é à toa que numa segunda versão (1997) a câmera se volte para barrancos e encostas. A sobreposição do que é fluido e passageiro não produz variação, mas constância; não produz talvez propriamente um ritmo, mas pausa e intervalo, fixando a nuvem e prendendo a espuma. O que resta de um ritmo (olhando-se para a série de fotos em seqüência percebemos que a espuma varia e que a paisagem aparece ou desaparece à nossa frente) serve apenas para garantir um todo fluido, uma constância harmônica na passagem do visível ao seqüestro completo da montanha. 

Se Deriva for mesmo o núcleo poético de todo o trabalho, então deve ecoar através dele, e servir para que tiremos, como num exercício espiritual, alguns de seus preceitos básicos: 1) Não duvide daquilo que aparece – ele varia em graus e chega às vezes a desaparecer, mas captar o movimento entre tais extremos é a tua tarefa; 2) Não duvide do lugar – cheio, vazio, transparente ou opaco, molhado ou seco, sólido ou mole, teu primeiro dever é recortá-lo, enquadrá-lo, paginá-lo; 3) Não duvide do ritmo, do pulso que aciona as coisas dentro do teu mundo – a maré que as recolhe é a mesma que as devolve; 4) Não haverá buracos, hiato, perda de contato aqui onde estás, pois mesmo o que te é mais diverso e estranho o tempo todo te procura

Há uma garantia de fundo que estas fotos parecem oferecer, um arrimo de que as coisas mais fugidias permanecem, esperam por nós, e que o pintor poderá sempre se dirigir a elas, ao rastro delas, à sombra delas, com confiança e serenidade. E uma vez garantido isto será possível então fazer o movimento contrário: esgarçá-las, torná-las transparentes, fazê-las quase sumir; será possível trabalhar nelas sempre a sua intensidade, chegando ao limite do mais e do menos. Para quem vai quase perder o mundo, é preciso antes assegurar-se de que ele continua lá – acho que, em sua misteriosa simplicidade, é isto o que estas fotos fazem.

É uma experiência comum a muitas pessoas, ao olhar para os quadros de Fábio Miguez (em especial aqueles que vão de 1995 a 2000), achá-los de imediato meio indefinidos e desbotados. Aos poucos, no entanto, como se acionassem um dimmer dentro deles, as diferenças internas se acendem, obrigando a reparar no que há instantes não se via. Então uma forma rosa aparece (mas ela já estava lá), e o bege do funil torna-se um laranja forte. A demora destes quadros em aparecer mantém-se fiel ao sentido de todo o trabalho – se as coisas derivam, é em seu ir e vir que é preciso apanhá-las. Não podemos pô-las propriamente onde queremos, fincando uma estaca em seu peito; não podemos gritar seu nome, denunciá-las; não, somos pescadores do que está fluindo numa trama delicada – longe de nós interrompê-la. Temos de esperar por elas. Sabemos que a cada corpo corresponde um fundo, a cada cor o seu contraste, a cada traço (como nos quadros de Munch) o eco quase aquático de suas reverberações. É a este todo que nos dirigimos, recortando o lugar onde o espetáculo ocorre, acionando o ritmo imóvel do aparecer e desaparecer de tudo, mas sem mexer demasiado com ele, buscando preservá-lo em sua integridade. A extrema dificuldade do trabalho de Fábio Miguez é que qualquer impulso mais forte, qualquer investimento excessivo num único elemento pode afugentar a delicada fauna dos demais. E, no entanto, trata-se a seu modo de uma pintura de ação – uma ação quase imóvel, mas ainda assim uma ação. O pintor não enxerga apenas, mas funde-se ao enxergado. No entanto, não é mais, como em de Kooning, o corpo quem se funde, mas uma corporeidade também ela feita de distância e de léguas – um corpo longínquo, quase um rastro. É este rastro quem pinta, e pinta desde longe. Mas por ser ele mesmo uma pegada, uma sombra sobre a areia, consegue trazer para a tela seus semelhantes – sombras, sinais, em vez de tinta e matéria. 

A interrogação sobre a intensidade dos elementos que utiliza parece estar no centro da pintura de Fábio Miguez – o que o coloca, desde já, entre os discípulos longínquos de Cézanne, em especial de suas aquarelas: aqueles para quem nunca será possível tocar verdadeiramente a montanha; aqueles para quem pintar a montanha será, ao mesmo tempo, torná-la presente e mantê-la afastada. É a variação desta intensidade o seu achado mais original, e o centro de orientação de todos os outros achados; é isto o que levou sua pintura àquela desmaterialização enérgica e progressiva que sofreu desde meados dos anos 1990, numa atitude quase solitária em relação à sua geração. Pois me parece que Fábio Miguez determina antes de mais nada a quantidade de corpo que uma forma agüenta – entendendo-se por isso não apenas a quantidade de matéria, mas a intensidade de sua cor e a especificidade de sua luz. Mas a quantidade de corpo de determinado corpo é, antes de mais nada, um valor relativo. Não é de estranhar portanto que a quantidade de matéria seja tão rarefeita e sutil, que a luz hesite através da transparência, que a cor module através de meios-tons – para que não seja possível isolar um elemento e você possa ver cada poro do tecido debaixo do amarelo, cada rastro da terebintina, e ainda a pequena borda de cera que a espátula deixou. Um corpo não deve obliterar a relação entre os corpos; devem todos deixar passar uma energia constante, independente deles, feita de partidas e de chegadas, de portos e de baías. 

Postos como objetos essencialmente relacionais, qualificados a partir de sua maior ou menor intensidade, os seres que habitam a pintura de Fábio Miguez têm uma vocação verdadeiramente democrática – não digo coletiva, pois individuam-se fortemente, mas democrática: devem percorrer o circuito de todos os outros seres antes de singularizar-se, devem perguntar aos demais o quanto agüentam de corpo, de luz e de cor para definir então o quantum de sua própria aparência. Neste sentido, não percebo aqui qualquer conflito entre os elementos, nenhuma agonia que o ato de pintar sintetize e ultrapasse (e o trabalho separa-se então do quadro cultural norte-americano que parece tê-lo inspirado tanto) –, ao contrário: a estranha calma que vem crescendo nestas pinturas resulta da certeza, que ecoa ao fundo, de que cada parte encontrará aos poucos o seu lugar entre as demais.

Sei bem o esforço que o trabalho faz para livrar-se de um certo apaziguamento de base, de uma anemia unificadora. As formas fixas, algo geométricas, introduzidas a partir de 2000, a espessura da madeira balsa, a espessura dos tarugos pintados de laranja, vieram para oferecer contraste e resistência, para problematizar a intuição básica do trabalho. Mas não sei ver aí propriamente contraste ou ruptura – acho, ao contrário, que estes novos elementos aumentam apenas a aposta numa harmonia de fundo, fazendo com que inclua toda uma turma nova de estranhos vizinhos. Além disso, a espacialidade do trabalho ganhou, com estes novos elementos, uma dimensão mais potente. Pois pontuam o perto e o longe, acionam o mecanismo da escala, os fios do que é próximo e do que é distante. E onde o espaço é generoso muita coisa sempre cabe, muita vida pode se dar de um jeito ou de outro, e a variação dos elementos passa a ser maior. É assim que novas formas parecem estar entrando, e novas cores, e novos modos de aplicar as cores às formas, reforçando a convivência do que é díspar.

O que estas novas telas1 trouxeram ao trabalho foi uma ênfase no individuado, no singular. Pois se antes todos os elementos do quadro brotavam ao mesmo tempo desde uma transparência (como uma anti-

neblina) de fundo, numa maré de claros e de brancos (o branco da tela, o  branco da tinta, a transparência da cera e o aguado da terebintina), que o movimento dispersivo das pinceladas ia espalhando e unindo, agora 

o campo do trabalho já parece tão afirmado que não é mais preciso temer o que nele se coloque – como se as fotos já não precisassem da 

espuma e da neblina. Em poucos artistas o formato da tela parece tão relevante quanto em Fábio Miguez (para mim, seus melhores quadros são aqueles que têm formato acentuadamente horizontal), pois a tela de onde se parte está já investida de positividade – ela é por si só um lugar poético, dotado de propriedades atuais, e não apenas de possibilidades que a pintura saberá despertar. Esta característica da tela, a de aparecer enquanto tal, que é própria da vocação antiilusionista de mais de um movimento de vanguarda, retorna curiosamente invertida aqui, pronta para facilitar o jogo de esconde-esconde dos seres que são postos sobre ela. Daí que, ao contrário destes movimentos a que me referi, não apa-reça enquanto superfície ou anteparo, mas enquanto campo, espaço onde os elementos, ao serem dispostos, se aproximam e se afastam. 

Por isso nada aqui é propriamente colocado, nem colado, mas antes ambientado num fluxo que o antecede e que depois perdura. Sei bem que tarugos com dez centímetros de espessura são às vezes colados à tela, mas parecem, no fundo, a materialização extrema de sombras delicadas que emergem lá do branco profundo. Não interrompem o traslado dos elementos, seu fluxo para frente e para trás, para cima e para baixo; nunca quebram a deriva que os impele e abraça. 

Então há talvez uma vantagem nestes trabalhos novos: os elementos da pintura podem se expor sem medo, sem que tenham de mostrar o largo trajeto de seu nascimento (como faziam nas telas anteriores), estendendo afinal sua deriva à terra firme. Parecem, justamente, ter saído de um elemento aquático que os atravessava e unia para a nitidez que têm as coisas expostas ao sol. É ao sol que agora se mostram, sem a capa líquida que os protegia e refratava. São nítidos. São lúcidos. Parecem prontos para deixar a placenta onde dormiam. Andam para lá e para cá, 

ensaiando alguns passos. Ficam pequeninos na paisagem. Encontram um pedaço de funil. Um caco de espelho. Veja: uma lamparina. Caminham de volta até nós, carregando o que encontraram. Não é que andem em grupo, mas sabem da presença uns dos outros. Não é que sejam feitos de matéria mole, mas podem sobrepor-se, fundindo-se parcialmente. São opacos, mas um pouco da transparência deste lugar os inunda e atravessa. Bóiam. Brilham sob um sol que vem de fora, mas que atende aos desejos deles. Brincam de mandar no sol. Mandam nele, de fato. 

Um pouco como nos sambas de Paulinho da Viola, há uma alegria doída nestas telas, que é difícil explicar. Será porque alguma coisa parece estar sempre longe? Será porque o espaço é mais poderoso que os elementos? Ou será a discreta harmonia com que se acendem uns aos outros, sem solavanco nem precipitação? Será porque parecem restos, sinais de uma outra coisa (o de Kooning que haveria do outro lado delas), que esteve ali e nos deixou? Será porque nos lembram que já nos esquecemos disso? Nos sambas de Paulinho da Viola, talvez seja o próprio amor pelo Samba o responsável pela delicada tristeza que organiza as canções. Esta tristeza parece capaz de conservar aquilo que canta numa região preciosa, poupada da ansiedade do presente. Então o reino encantado da Mangueira e da Portela resguarda-se numa região sublimada. A beleza e afinação de seu canto montam guarda, velando por todos. Acho que um pouco disso ocorre com o trabalho de Fábio Miguez – aquele bicho hibernado, armazenando energia, de que falei no início, parece estar despertando. A ruidosa engrenagem do presente ficou de fora, e a pintura, poupada, não exibe cansaço, rugas ou trejeitos. Afinal, toda aquela neblina e espuma só queriam deixar-nos em paz, livrando-nos do aeroplano, do telefone e do mau-olhado. E agora que o próprio trabalho já nos deu confiança, podemos sair de novo para a luz e para o nosso sol – não essa estrela redonda andando sempre em círculos, mas um sol diverso, errante, disperso e transparente. 

Mira Schendel: no vazio do mundo, organização Sônia Salzstein. São Paulo:Editora Marca D’Água, 1996. 

1. Refiro-me às telas realizadas a partir de final dos anos 1990, em que objetos tridimen-- sionais (cubos salientes, tarugos elípticos) são acrescentados ao plano do quadro.