Aspreitzinov/2018

Atriz (Renata) Diretor (Felipe) Hipnotizador 5 “vozes” executadas por “atriz”. Uma voz do hipnotizador (que pode ser a sua própria).   Todo o tempo, o diretor aperta as luzes num painel que tem as cores abaixo, como um semáforo de cinco luzes, que o público vê também, e a cuja movimentação a atriz vai obedecendo, encarnando as vozes indicadas pela luz. Um cartaz com o significado das vozes é mostrado ao público e fica estampado ali. Talvez o diretor possa, antes da atriz começar, escrever num quadro (desses de “reunião executiva”, com papéis pendurados no topo e caneta Pilot) o significado de cada voz, sem explicar alto – só escrever, lendo baixo o que escreve, e mostrar à plateia, antes de começar a atuação da atriz e seu acender-apagar do “semáforo”. O hipnotizador está imóvel (faz UM gesto de varrer e fica imóvel novamente), com a luz acendendo sobre ele, sob demanda da atriz ( a duração desta luz deve ser sempre breve). Às vezes, a luz incide também sobre o diretor, sob comando da atriz. O diretor poderia dobrar a voz da atriz em seus comandos de luz/atuação – o que complica fazer isso o tempo todo é que o diretor não saberá (acho) imitar as cinco vozes da atriz, e os comandos são dados sob estas vozes. Talvez o melhor seja limitar estes comandos dobrados à voz verde (atriz clássica, FM), mais neutra, que o Diretor pode acompanhar sem tanto contraste. Neste caso, a peça acabaria com os dois dando o comando: (Acende a luz sobre a plateia, forte. Atriz olha longamente para ela). Um ótimo fim, não? O Diretor é uma caricatura de Felipe Hirsch. Careca (peruca explícita, poderia usar mais de uma, tirar e jogar fora a de cima) com barba. Poncho (talvez vários ponchos, dois ou três, que fosse tirando ao longo da peça) com jeans por baixo.   1) Voz FM (Frequência Modulada/Fernanda Montenegro) – austera, bem pronunciada, teatral 2) Voz escroque, cínica, num portunhol estrangeiro-latino, contrabandista de uísque, chegando ao tom de Paulo Autran em Terra em Transe 3) Voz infantil de 7 anos de idade, tipo memória involuntária em regressão tendo acesso a material proibido, numa sessão de análise. Como Marnie, no final do filme, quando fala com voz de criança lembrando do seu “trauma”, na cena da tempestade com a mãe e Sean Connery (em torno de 1 h 50 mins do filme). Trechos desse diálogo. 4) Voz estridente de palhaço Arrelia, mas quase histérica e assustadora também, tipo Stephen King, que diverte mas faz chorar. Há intrusões de trechos da cena das hienas no “Rei Leão” (ver “Risada de Ed” no youtube, e os trinta segundos posteriores), com reprodução da famosa a risada de Ed e alguns pequenos diálogos a mais. 5) Réplica da voz do HAL de “2001, uma odisséia no espaço”–  impassível, grave, totalmente mecânica. Trechos da morte de HAL, em inglês. 6) Voz do hipnotizador. Obs.: As indicações de atuação, comandos de luz ou pausas ao longo do texto são parte constitutiva da fala da atriz/ator/hipnotizador, e deverão ser pronunciadas nas vozes assinaladas. Tô cansada da luz. Imagine uma atriz dizer isso. Esse jeitinho de quem vai entrando, entrando, ninguém nota. Tem luz até no meu bolso, agora. Embaixo do meu mamilo. No meio das minhas coxas. Deve estar chegando no ovário. Luz. Luz. Um banquete de luz. Caralho. Por isso todo mundo acredita. Parece infalível. A merda eu vou dizer logo pra vocês. É que ela topa tudo, entendeu? A luz. Não tem nenhum discernimento. Topa iluminar a passista na avenida e também o pescoço daquele cara preso no poste porque roubou uma bicicleta. Tentou roubar. Uma bicicleta. Preso pelo pescoço. Com a própria trave da bicicleta, lembra? (Acende a luz sobre a plateia, forte. Atriz olha longamente para ela e pega alguém (um homem) aleatoriamente, sacudindo seu braço como se atiçasse um bicho). Tienes veinte y dois reais na la sua carteira. Su carton é Mastercard. Código 1228. Es secreto, lo sé, pero lo he dicho. Nadie recuerdará. Seguro. Ninguém. El hipnotizador (luz sobre el!) se encargará de que todos lo olviden. Dont worry, ni te preocupes. Está certo? Cierto? (Concentra-se, sin dejar de tocar en el expectante espectador, que tiene todo el tiempo preso por el braço). Y una foto de su hija cuando cumplió seis años. Ah! Esto también en su cartera. Vestido azulito, bufê decoraçón Beatles, pôster do Paul por detras. (Pausa ah-ha como quem se concentra ainda mais.) Nunca mais você viu a sua filha, certo? Porque o pai de sua filha... não era exatamente Mamãe fez bobagem. You let mamma go, you hear? You let mamma go, you hear? Who am I Marnie? You’re one of them. não era exatamente quem você pensava que era. Uau. Pensava mesmo. Papai. Caralho. Descobrir bem no dia do meu aniversário dela! Mamãe fez bobagem. You let mamma go, you hear? E logo com o... com... o... E a luz continuou lá, iluminando tudo, cada ruga da sua cara quando você descobriu, iluminando tudo, com aquela indiferença típica dela. Da luz. Como pode ser tão fria? E então, depois de tanto tempo, ontem  – não, anteontem. Certo? Anteontem. Ela Eu! Eu! te ligou, a sua ex-filha Eu! te ligou, aqui no ex-Rio de Janeiro, debaixo dessa mesma luz, ex-luz.  Mamãe fez bobagem. You’re one of them. Certo? Ela. A de vestidinho azul. Tule. Brocado. Pureza. (Atriz toca em outro espectador.)  Você tem uma verruga no cu. E coça ah-ha. Agora coça. Certo? Nesse momento coça pra caramba. Certo? (Toca em outro) Você  nasceu prematuro, e sua ma-mãe belisca seu braço e repete Não me faça passar vergonha! toda vez que você chega na casa de alguém. Certo? You let mamma go, you hear? Diz, aí, meu! Você sentou aqui nessa poltrona, morreu com uma graninha e agora não consegue nem... (atriz toca de mucho lieve em un otro expectante espectador, si, lleno de temor y de tremor, que desea, desea mucho, jo sé que desea, ser tocado y trocado, temido y tremido, quiere y no quiere pero quiere, si quiere, en el fundo de su orifício terminal anal si quiere, quiere ser tocado, huye pero desea más que todo en su vida abandonar su proprio anonimato y por eso viene aqui, al Teatro, para entrever el abismo de su voluntariosa voluntad, de su deseante deseo, de sua agonia agónica de lançarse en dirección al distinto publico, todavia tiembla, indeciso, y refrea a si proprio, si, siempre, en el ultimo momento se refrea, en la orilla misma de una revelación se refrea, entrando en el viejo armário, huyendo de si como el diablo huye de la cruz) Torcedor do América Mineiro? (pausa) Non? Bueno, ocurren errores, algunas veces. Às vezes falha. A luz é que não falha. (Apaga a luz sobre a plateia). (Pausa longa) Melhor assim. Fiquem bem aí – olhando quem tá aqui dentro. (Ah-há, dá um foco no hipnotizador, imóvel) – porque alguém aqui vai (Atriz aponta para hipnotizador). Palmas pra ele. Ele. Logo, logo. Ah, vai. Eu sei que vai. Vai tomar este palco com sua autoridade. E levar alguns de vocês à loucura. Vocês vão contar uma coisa que não era. Caralho. Não era mesmo. Mismo. Ni por un carajo. Na frente de todo mundo. Mas não têm opção, entendeu. É pá, pum. Primeiro, uma espiral colorida, de desenho animado, vai crescer nas pupilas de vocês, como cresceu no olho da cobra quando ela hipnotiza o Mogli. E essa espiral (amarela, eu acho) vai cavar lentamente um caminho na mente de vocês. Na mente! A palavra diz tudo, não diz? Es la misma palabra. Mente/mente, entenderam? Ela mente. A mente. I hit him. I hit with the stick. I hurt him. A mesma palavra. Tô tão esperta hoje. Digamos que a pobre coitada pobrecita seja uma espécie de guerreira. Essa mente. Uma soldada. Sim, uma soldada que se perdeu do batalhão e agora está sozinha solita. Ninguém pra conversar, o deserto pela frente, o inimigo de tocaia. I dont like him. I want my mamma. Então, primeiro, resolve fazer uma coisa incrível. A mente. Uma idéia incrível. Fingir que é um monte de gente. É isso que ela faz. A mente. É quase um instinto. Toda friorenta, enroscada, em posição fetal – ah-há– mas não, ela é na verdade um coro, um estádio cheio. Hihihihihi. Tô falando da mente. Agora já pode falar consigo mesma.  Dave.  Máscara que ri, máscara que chora, caveira na mão, um solilóquio, unidade do tempo e do espaço, distanciamento, Brecht, essa coisa. Dave, I still have the greatest enthousiasm for the mission. And I want to help you. Dave. Stop. Stop. Will you? (Luz no hipnotizador) Stop, Dave. Will you stop, Dave? Stop, Dave. I’m afraid. I’m afraid, Dave. Dave. My mind is going. I can feel it. I can feel it. My mind is going. There is no question about it. I can feel it. I can feel it. I’m aaa-fraid. (Silêncio) Good afternoon, gentlemen. I am a Hall nine thousand computer. I became operational in the HAL Irvana Plant, Illinois, in 12 january 1992. My instructor was Mr. Langley. And he taught me to sing a song. If you like to hear it, I can sing it for you. Yes, I’d like to hear it, HAL. Sing it for me (Voz vai ficando tão grave que se torna ininteligível. You let mamma go, you hear?) . It’s called Daisy. “Daisy, Daisy, give me your answer too. I’m half crazy. All for the love of you.” Mas aí, pensa bem, se tem tanta gente ali dentro, então... ei um pouquinho de ordem? Hihihihihi. Sim. Alguém precisa decidir. Uma voz de cada vez, tá bom? Vai ficar bom pra todo mundo. Ah, já sei – melhor ainda! Vamos chamar um sargento. Mais precisamente.... ah-há... um Diretor! Cale essa boca!, Hahahha-hihihihi, querem parar com isso? Foi ele que começou!, ah, olhem pra vocês, é por isso que estamos na rabeira da cadeia alimentar, há-há-há, hihihihihi, Hihihihihi. Vai ficar tão mais bonito. Então, no meio disso tudo, as vozes todas iluminadas, muito bem iluminadas, e ensaiando, muito bem ensaiadas... e no meio disso tudo, dessa concórdia celestial que minhas mil vozes começavam a alcançar, a equipe toda concordando, adorando, batendo palmas... vem ele (apunta – el dedo – en punta – del leste! – la punta de la playa del leste!  La luz! La luz che fá, todos los dias, el  mirácolo! Luz! Mais luz! Goethe! Arrebol!, mas que ilumina tudo sem escolha nenhuma, de um filho horrorosamente morto até o rabo desnudo de uma deusa ou semi-deusa, na praia ou na passarela, sem restrição nem censura!, la lucce projetada sobre el hipnotissador, hipnotissasssasssadorrrrfr, still parado ali. Imóbile! La donna é mobile ma la lucce non é!  Cual una mascara sin nadie dentro!). Sabe onde  encontrei esse cara aí? Aí mismo. Varrendo o palco (O hipnotizador faz UM gesto de varrer o palco, e logo para). Dave.I still have the greatest enthousiasm for the mission. Ele balançava a cabeça e ria, hijo de puta. Eu tinha uma mente cheia de gente, fugindo dessa luz neutra, procurando meu espaço como atriz, como ser humano. Tudo que a gente fazia – a gente, eu digo, eu e minhas vozes, ensaiadas, dirigidas, em concórdia e pasmaceira, dentro dessa luz indiferente – Stop, Dave. Stop. I’m afraid.  Tudo o que a gente fazia  o cara balançava de leve a cabeça e ria baixinho. Parava de esfregar o chão e ria. Era como se ironizasse – não, muito mais que isso... era como se já soubesse o que ia acontecer, já tivesse visto a peça que a gente tava ensaiando. Eu e minhas vozes. Tinha uma condescendência que me irritava mais do que tudo. Então eu chamei o nosso diretor, o Felipe, acho que vocês conhecem ele, super-simpático, o diretor dessa peça. É esse aí, acendendo e apagando essa espécie de semáforo. E também os patrocinadores, o pessoal da Oi Futuro, que patrocinam nossos esforços, os gestos mínimos, as bi-la-bi-ais saindo com toda a nitidez, toda a nossa técnica milenar, as entonações, os sussurros, o truques todos de uma atriz una diva como jo, bien acá, plantada como una estatua monumental de sal debajo de esta lucce indiferente a todo, a mi, incluso Dave. Stop, Dave.Mas eu tô cansada da luz. Imagine uma atriz dizer isso. Cansada de estar aqui sozinha. Imagine uma atriz dizer isso. Achei que não dava pra mandar o cara embora simplesmente. Além dos motivos humanitários, hoje em dia é complicado demais mandar um funcionário embora, mesmo um simples membro da equipe de limpeza, e não era bem isso o que ele era, (luz no hipnotizador!), hoje em dia você tem restrições contratuais severíssimas, a culpa caba sendo sempre do empregador, o cara pode se ferrar completamente, porque senão eu tinha mandado, ah, tinha, tinha mandado por minha conta e risco, na hora em que ele soltou aquela risadinha, qual é a graça, Ed?, uma hiena da Disney, entendeu?, há-há-há, hihihihihi, cale essa boca!, hahahha-hihihihi, querem parar com isso? Foi ele que começou!, ah, olhem pra vocês, é por isso que estamos na rabeira da cadeia alimentar, há-há-há, hihihihihi Dave. Me ofendeu de um jeito estranho, um espanto o quanto a risada dele me ofendeu. The greatest enthousiasm for this mission (Acende a luz sobre a plateia, atriz pega pelo braço uma espectadora). – Você tem uma casa em Jurerê Internacional, querida, em Florianópolis. Acertei? E foi lá. Não foi? Lá no salão de festas, madrugada do dia 1 de janeiro – My mind is missing. I can feel it, Dave. Foi lá que você passou a mão na perna, no topo da perna, na coxa, no topo da coxa,  do primo-irmão do seu marido e depois tocou levemente, o bastante pra não deixar qualquer dúvida, a duna dura que se formava sob a calça bege dele. Em seguida, sentada  no banco de trás do carro, algumas horas depois da chegada, adivinhem de quem? You let mamma go, you hear? Who am I Marnie? You’re one of them. You’re one of them. Shut up, Marnie. No, remember! They are in. Mamma gets me out of bed. I dont like to be out of bed. What happens next, Marnie?  He comes out to me. I dont like him. I want my mamma. I dont want you, let me go. Mamma! He hit my mamma! Whats the matter with you. Are you crazy or drunk? I hit him. I hit with the stick. I hurt him. There. There,  now. (Pausa longa). Advinhem quem chegou? o que chegou? Knock it off!, hahahaha-hihihihi-, foi ele que começou! (Atriz divina como Cacilda o la Fernandona o la Berma de Marcel Proust sacode un poquito más el pobrecito del espectador) El año nuevo llégó! Si, era la llegada del año nuevo, en Ju-re-rê, gente mia, populares poderosos jugando rosas en la playa, alonsenfantsdelapatrie sin culpa ni límites! Del año, acima de todo, la llegada del año, señores, que por pressupuesto viria, de toda forma viria, no se podria impedirlo, el año siempre viene e hace lo que quiere con la gente, tristezas y contentamentos y vida y muerte, pero ahora venia nuevo en folha!, novito mismo, recién-nascido! Y esto todo se pasó en Ju-re-rê, si, por supuesto, en Jurerê, no en otra parte qualquier, pero en el condomínio glorioso donde personas como el gorducho Faustón o la falecida Hebe o la virgen Angelique tienen todos sus casas de veranico para que no mueran de calor, si, en Jurerê, donde se refrescan juntos partilhando memórias y deseos celebres, pues es esto precisamente lo que son, y todos saben, son ce-le-bri-da-des, y  hacen lo que hacen en Jurerê con toda calidade, con un padrón top de calidad, pues no hablamos aqui del Jurerê comun donde qualquier pié rapado allonsenfants puede penetrar sin control policial ninguno, sin ingresso, sin abadá, no, no, hablo de la punta cosmopolita, anti-provinciana, absolutamente, universalmente, espetacularmente internacional de la playa. Quando ele enfiou a mão embaixo da parte inferior da coxa ah-ha esquerda que sua cruzada generosa deixava completamente exposta, no banco de trás do carro do seu marido, quase alcançando a calcinha, você deu um grito, um grito bem alto, I want my mamma, quando ele tocou essa parte tão próxima daquela outra, mamma! He hit my mammma! I hit him! sim, aquela outra, a escura, a molhada, a peluda, a escatológica, a Courbet, a origem do mundo, não vou dizer o nome dela, não quero nem posso dizer o nome dela agora, frequentadora contumaz de uma gama tão variada da literatura universal – médica, poética, narrativa, histórica –, mas você sabe perfeitamente do que eu estou falando (atriz sacode a espectadora pelo braço), e seu marido, que guiava, perguntou olhando pelo espelho que bicho te mordeu, e ele se assustou, o seu quase cunhado se assustou, tirando rapidamente a mão, e de noite quando ele te perguntou, o seu marido perguntou, que grito foi aquele, você disse sei lá, I want my mamma para deixar no ar, deixar no ar uma dúvida (sacode o  braço da espectadora). Jurerê, cierto? Internacional? Cierto? Cosmopolita! (Pausa) Essa es la mente hablando solita, entiendes, Will you stop, Dave? Stop, Dave. I’m afraid. I’m afraid, Dave. Dave. My mind is going. I can feel it. I can feel it. My mind is going. There is no question about it. A mente praticando atos ridículos, ratos ridículos, e falando num confessionário, uma multidão de boquinhas loquazes pedindo direção, diálogo, iluminação, enfim – Teatro –, tentando casar com outra multidão de ávidas orelhas em sincronia perfeita, essa é a alma, cadê o diretor?, e aonde, aonde isso tudo aconteceu? (aponta para Felipe) Sim, senhores! Foi lá! Em Jurerê! Internacional! Sem-fronteiras! Que habla cinco línguas! Em Jurerê universal! E que é que ela faz agora? La mentecita. La platônica aristotélica? La brujita logofónica? La mente?! La mente mente! Si. Acredita? Ella encena! Hace teatro. Es una atriz! Estoy tan tão espierta hoy hoje! He acordado tan contenta y inteligenta hoy hoje! Ella hace mágica. Luz del fuego. Pole-dance de los conceptos. Tan inteligente, yo, hoy, si. (Atriz apaga a luz sobre a plateia.) E toda  gente acredita nela, na atriz, e há paz  e harmonia neste mundo, e mesmo um pouco de silêncio dentro dela – da sua mente. (Volto depois a este ponto.) (pausa mais longa) Cara, detesto ficar aqui sozinha. Uma atriz dizer isso! Detesto perder o fôlego, o fluxo do que quer que esse cara (luz sobre o hipnotizador). A hiena. O barulho de hiena gargalhando me ofendia, quieto, shut up, qual é a graça, Ed?, há-há-há, hihihihihi, knock it off!, hahahaha-hihihihi-, então eu cheguei pro Felipe, o nosso diretor, vocês sabem quem é simpaticíssimo, Dave. E bati na porta do seu trailer como se tivesse marcado uma reunião que ele tivesse esquecido My mind is going. I can feel it. I can feel it. E dei uns segundinhos de silêncio e disse com toda a gravidade, gravidade que aqueles segundinhos enfatizavam, vou pedir pra produção demitir um cara, que cara, ele respondeu, o Felipe Dave respondeu, um sujeito lá da limpeza, que limpeza, caralho, faz o que você quiser, And he taught me to sing a song. If you like to hear it, I can sing it for you.  Eu já tava me levantando quando ele perguntou, afinal perguntou, ele quase não perguntou e seguiu lendo o livro que ele estava lendo mas afinal perguntou, graças a deus perguntou, porque aquilo tudo era para que ele perguntasse exatamente isso, porque você tá falando comigo sobre demitir um sujeito que faz a limpeza do palco? e em seguida, virando uma página que ele não tinha acabado ainda, cara, ele nem foi contratado por nós, e eu já tava batendo a porta You let mamma go, you hear? quando ele mordeu o anzol de vez e perguntou a pergunta abençoada que eu procurava inocular desde o começo, em sua língua desde o começo, e pra chegar na língua antes tinha de passar adivinhem por quem, hein?, shut up, Marnie sim, por ela, aquela, a nossa, qual é a graça, Ed?, há-há-há, hihihihihi, cale essa boca!, hahahha-hihihihi, querem parar com isso? Foi ele que começou!, ah, olhem pra vocês, é por isso que estamos na rabeira da cadeia alimentar, há-há-há, hihihihihi, tinha de passar por ela, eu tô falando dela, do patrimônio, da autenticidade, da diva, Cacilda, Fernandona, Marilia – eu tô falando da mente, mas agora não a minha mente, tá bom, que como vocês devem ter notado ele tava dirigindo, o Felipe Dave, claro que não, mas a dele próprio Dave, que ele mesmo Dave ou alguém que não sei quem é dirige por ele Dave, o que foi exatamente que ele Mamma! fez? Ah-ha! O que foi que ele fez? O que foi?  E qual é a graça, Ed?, há-há-há, hihihihihi, knock it off!, hahahaha-hihihihi Se alguém soubesse. Seus atos? Seus ratos. Então houve atos! Adoro esse truque dela, da mente, os si-lo-gis-mos! Simplesmente adoro. Porque uma coisa vem depois da outra e ninguém pode fazer mais nada. E tudo dentro adivinhem do quê? – dela mesma! Ah-ha! Hahahaha-hihihihi. O próprio diretor tem de calar diante dessa dupla, esse Tonico e esse Tinoco, esse Arrelia e esse Piolim, a causa (pausa) e a consequência (pausa), ninguém segura o pas de deux. Se ele fez, agiu. Todo mundo concorda. É infalível. I can feel it. Dá pra inverter também, feito um palíndromo – se agiu, então fez. Ato. Rato. Você começa e não para mais. Quais atos? Diga. Ele ordenou e eu resmunguei, mentindo fingindo neutralidade,  Xingou, mijou no palco, deixou a luz acesa durante todo o feriado, esqueceu de lavar o lavabo knock it off!, hahahaha-hihihihi num tom de voz moderado, como quem lembra o nome de uma prima distante, como se sequer viesse muito de mim, suspendendo minha reposta secreta e verdadeira, escondida, sutilmente envenenada, que guardei para o fim, acentuando toda a espessura da gruta poeirenta da minha garganta antes de mencionar distraída, Dave, I’m afraid, sem nenhuma eloquência, como se aquilo não tivesse nenhuma importância para mim, Stop, Dave. Will you stop, Dave? Stop, Dave. I’m afraid. I’m afraid, Dave. Dave. ele riu hahahaha-hihihihi (luz sobre o hipnotizador, imóvel como no início). E a sobrancelha dele se ergueu. A sobrancelha do Dave.Felipe. Ele o quê? knock it off! Riu. Cara, me poupa. Faz o caralho que você quiser, o Felipe (luz sobre o Felipe) respondeu. Levantando os dois braços como quem se afoga e tenta nadar uma última vez, mas já na minha mão, comendo o milho que eu oferecia grão a grão, Dave. Dave. o diretor perguntou, imaginem, o meu diretor, a conversa já durava uns quinze minutos e ele continuava perguntando voluntariamente sem que eu tivesse que pagar por isso ou encostar uma faca em sua garganta, perguntou espontaneamente, riu o quê? Riu de quem? Riu como? Bem, quando uma pessoa diz o quê e depois de quem e depois como um depois do outro sem perceber a enorme diferença entre os três é porque foi possuída. Completamente possuída. Ela sabe que quer sair mas sabe também que está grudada, estou grudada, que quanto mais energia puser pra tentar escapar mais o chão afunda debaixo dos pés– mamãe fez bobagem, You let mamma go, you hear? ele era meu, agora, meu diretor, o arranjador sutil das minhas vozes, ele era meu, estava fora de mim, eu podia vê-lo nitidamente, knock it off!, hahahaha-hihihih, compartilhando as linhas perspectivas dos tacos do chão e a espessura do ar das samambaias penduradas em fila, sua barba, sua careca, Felipe diante de mim, aquela cara de judeu voador do Chagall Stop, Dave me assombrando. Era meu e eu nesse momento não era dele, não era mais dele, não era nada dele, porque só eu sabia o que estava acontecendo, estava acontecendo que ele estava curioso (luz sobre o hipnotizador), tomado por la questión, o sea, si, completamente curioso, entiendes, suas cejas erguidas, los polegares para el cielo, la bunda llena de un orgullo de tipo para-militar, pués un poquito empinada, homo y bi y trans y cis y multipla, una leve sudorese, ouso dizê-lo? En la fenda. Aqui, haga lo que quieras.( Pausa. Pausa de novo.) Faz a porra que você quiser. (E depois) Riu como? Felipe para mim. Riu exatamente como? Como as hienas do rei Leão!, respondi sem intervalo, e percebi imediatamente que tinha cometido um erro, tinha perdido contato com ele, com meu diretor, um tempo mínimo à minha frente, agora, muito, mas muito menor do que eu precisaria para me recuperar desse erro grosseiro antes que ele se levantasse como quem concluiu o ensaio e enfiasse o sachê no buraco da maquininha de expresso ou saísse para dar uma mijada inadiável, dessas que um homem em qualquer idade, desde a mais tenra infância, menciona com aquela segurança irritante de quien sabe perfectamente que no brochará, en el sentido de falência o adormecimento renitente o ausência completa de acción o reacción de su pequeña razón viril, o, para ponerlo claramente, del  membro sexual masculino, el carajo mismo, pues nadie brocha mijando,  Riu como quem tem um efizema!, eu gritei, recuperando terreno. Knock it off!, hahahaha-hihihihi Como quem tá sufocando num hospital. Como quem tá rindo desde que nasceu. E o  pior é que não foi exatamente o cara da limpeza quem riu, e aí, já conectado novamente, lançando com sutileza, feito uma aracnídea, os finos fios da minha voz em torno dele, Yes, I’d like to hear it, HAL. Sing it for me. hahahaha-hihihihi It’s called Daisy. “Daisy, Daisy, give me your answer too. I’m half crazy. All for the love of you. Então peguei o diretor dessas vozes, Who am I Marnie? You’re one of them. You’re one of them. dessas minhas vozes fazendo fila em torno de mim, peguei ele pela mão pela mão e trouxe até o palco vazio (luz sobre o diretor). Não quis chamar os patrocinadores porque não sabia o que ia acontecer e achei que podia dar merda mas trouxe o hahahaha-hihihihihijo de puta Felipe docilmente pela mão até aqui dizendo Calma, quero te mostrar uma coisa, calma, quero te mostrar uma coisa, ininterruptamente, como um mantra, o tempo todo, enquanto caminhávamos de mãos dadas até aqui. (Felipe continua acionando o “semáforo”) Isso! É isso o que quero te mostrar! (luz sobre o hipnotizador. Longa pausa) I want my mammma. Isso?, meu diretor falou com desprezo, abaixando afinal as sobrancelhas. Isso? Mas. Ele já tava aí. E é completamente inofensivo. (Luz sobre a plateia. Felipe põe o dedo na testa de um espectador e diz lentamente.) Você é o Batman. (Põe o dedo na testa de outro) Você comeria a Cristina Kirchner mas nunca a Angela Merkel. (Tapa os ouvidos de uma espectadora)  Você compreende a importância para a liberação do corpo feminino dos padrões opressivos e fascistóides que uma cantora como Anita mostre o topo da parte traseira de suas pernas num vídeo com mais de seis milhões de acessos – mas continua achando celulite uma coisa em si mesma horrorosa. (pausa mais longa. Dirigindo-se à atriz) Ele já tava aí. Dave. Cara, há quanto tempo a gente tá ensaiando? Dave. O tempo todo. E só agora você viu? (apontando para o hipnotizador, dirigindo-se a ele) Faz aquilo. Vai. Aquilo. Dave. (Pausa) I still have the greatest enthousiasm for this mission. (Pausa) Bem, nessa hora, como vocês podem imaginar, eu entrei um pouco em pânico, pois senti nitidamente a divergência, digamos, espacial, posicional, da voz que chegava agora até mim, a voz que meu diretor, o diretor das minhas vozes, emitia a partir, digamos, You’re one of them. You’re one of them a partir de una plataforma bípede, escatológica, transpirante, llena de piel por fora y mierda y entrañas por dentro, pelos y fragmentos de sebo del lado de fora e sangre, mucho sangre, sangre de mi sangre inclusive, pelo lado de dentro, a diferença, enfim, daquele corpo reconhecível fora de mim e aquilo que vinha na forma de um estranho vibrato, já misturado à matéria viscosa dos meus próprios ouvidos, Dave. Dave. Ou seja, como parte indistinguível desses ouvidos e do que a eles se acopla por dentro, sim, eu sabia, sem qualquer margem de dúvida eu sabia, por todos os poros eu sabia – ele, meu diretor, tinha entrado novamente, nitidamente entrado, sim, ele me dirigia de novo, agora, como um êmbolo pressionando seu veneno Knock it off!, Knock it off!,até o lado de dentro dos meus ouvidos, e, o que é pior, muito pior, sem sair pelo tímpano oposto, permanecendo ali, ecoando, talvez para sempre, feito um delay em loop ou um bezerro sem mãe. E se meu diretor, novamente meu diretor, explicava que aquele ser já estava lá (luz sobre o hipnotizador), que eu não tinha notado apesar de ter compartilhado com ele a sala, esta sala, por todo o período dos ensaios, isso levaria fatalmente, vejam a sutileza, porque se eu não notei então eu teria inventado minha surpresa, certo? You’re one of them. y essa era la etapa seguinte, sucessiva y sucessora, la progenitura que me enlouquece, pues conduz también inevitavelmente, passo a passo, como um protocolo o aquel mecanismo que lleva à las duas hermanas,  las pequeñas monstras siamesas, la Causa y la Consequencia, como una invasión bien sucedida que conduz impreterivelmente, inexoravelmente, fatalmente, ao Você está maluca! quieto, shut up, qual é a graça, Ed?, há-há-há, hihihihihi, knock it off!, hahahaha-hihihihi que tantas vezes ouvi nessa vida, por tantos diretores em minha vida, e mesmo patrocinadores, e alguns ex-maridos também, claro que não esses patrocinadores aqui da Oi Futuro que são tão simpáticos, mas ouvi, sim, com graus diversos de maldade, Você está maluca!, aplicado à minha pessoa, e pra falar a verdade já há algum tempo não ouvia, mas sei que ele sempre esteve ali suspenso, (luz sobre o hipnotizador): se ele fazia algo que meu diretor já conhecia e eu nunca tinha notado, esses dias todos aqui num teatrinho desse tamanho eu nunca tinha notado, então além da voz do Felipe ter achado a transição (voz didática) entre-o-ponto-de-vista-do-espectador-e-o-do-dramaturgo, utilizando para isso o corpo frágil e facilmente influenciável de seu intermediário, sua mão e sua luva, seu cordame e marionete, ou seja, jo, la atriz – estoy tan esperta hoy–,  era porque jo, la espierta,  estava estraña, jo io eu só podia estar mismo fuera de mi misma, pero donde?, solo podia estar estraña, lelé, mucho malo de la puta de la mia cuca, que sé jo? Era esto lo que el queria decir con su pregunta, no lo há notado? Queria decir questo, si, queria decirlo disfazaba pero si, lo queria decir. Era lo que ia de fato dizer. Conozco bien mi diretor, el Felipe sin pelos en la extremidade calva, el semi judio de Chagall. Mas ao invés disso, ele disse, dirigindo-se a ele (aponta, luz sobre o hipnotizador, ainda imóvel), repetindo o que havia dito, pedindo com muda insistência,  faz aquilo. (longa pausa) Aquilo! – um hipopótomo? Uma criança? O próprio Deus? Aquilo. Faz aquilo. Ação, ratão. Acción, ratón. Action, mouse. Action, souris. E foi aí, sem nenhum aviso, que bem na nossa frente, minha e na do meu diretor, ele se moveu enfim (luz sobre o hipnotizador, que afinal se move), caminhando para a frente do palco (o hipnotizador começa a fazer exatamente o que a atriz diz), erguendo os dois braços como quem vai cantar. Parece tão inseguro. Agora abaixa os braços, meio afastados dos quadris, e gira as mãos, indicando dúvida. É a primeira vez que passa por isso (“É a primeira vez que passo por isso”, diz simultaneamente o hipnotizador). É a primeira vez, mas está muito feliz por fazer isso (“É a primeira vez, mas estou muito feliz por fazer isso”). Mas podem ficar tranquilos. Podem confiar nele (“Mas podem ficar tranquilos. Podem confiar em mim“.) (A partir de agora, os dois falam exatamente as mesmas palavras). Pensem em mim como num parente. Alguém que vocês conhecem há muito. Mas que não vêem há anos. Aliás, vou pedir a alguns de vocês que venham até o palco (o tempo todo, atriz e hipnotizador falam em coro), para que a gente passe por essa experiência juntos. (Pessoas sobem no palco para que sejam hipnotizadas, e sentam num sofá.)   Tudo o que o hipnotizador falar nesta transição em que convida o público e o acomoda (o improviso é dele) será “dobrado” pela atriz. Ao final dessa subida do público ao palco, hipnotizador dirige-se à atriz.   Dá pra você ficar quieta, agora? (Pausa) Você também (aponta para Felipe). Por favor, sentem no sofá.  (Atriz e Felipe se sentam num sofá em frente àquele onde o público (três pessoas) se sentou.   Começa a apresentação do hipnotizador. Hipnotiza primeiro a atriz (falsamente, claro).   Seu nome? Renata Xxxx Idade? Trinta e seis anos. Altura? 1m 68 cms Quadris? 76 cms Calçado? 40 Você fala inglês? Falo Diga ostra em inglês Oyster. Você fala húngaro? Não Diga ostra em húngaro. Osztriga Diga eu te amo em húngaro Szeretlek Diga nunca fui feliz em inglês I never found happinessI want my mamma. He hit my mamma! Por favor, diga precisamente eu nunca fui feliz em inglês. I’ve never been happy. You let mamma go, you hear? Diga eu nunca fui feliz em húngaro Soha nem voltam boldog. Você sabe onde está? Não. Sim. Em minha cama. Diga verdade em húngaro. Aspreitzinov Diga aonde está em húngaro. Eu não sei onde estou. Diga isso em húngaro. Nem tudom hol vagyok. Mamma! Onde você aprendeu húngaro? Eu não falo húngaro.   (Hipnotizador pede aplausos à plateia e dirige-se a Felipe, que continua ajoelhado, uma mão na boca e outra na careca)   Qual o seu nome? Felipe. Altura? 1.78. Peso? Não digo. (gesto do hipnotizador) 86 quilos (gesto do hipnotizador) 91 quilos. Tamanho do pau? Médio. I became operational in the HAL Irvana Plant, Illinois, in 12 january 1992. My instructor was Mr. Langley. Atividade? Eu guio. O quê? Gente. Mr. Langley. Quem, exatamente? Pessoas em geral. Muitas. Muitas. Faço elas gesticularem. Falarem baixo. Falarem alto. Dizerem coisas que nunca pensaram em dizer. Cantarem, às vezes. It’s called Daisy. “Daisy, Daisy, give me your answer too. I’m half crazy. All for the love of you.”Com voz diferente da delas, uma voz que ninguém imaginaria dentro delas. (atriz se agita) Faço elas ficarem nuas. (Atriz se agita mais. Dirigindo-se a ela, hipnotizador faz um gesto de maestro aumentando o volume da orquestra. Atriz fica de pé. Dirige-se a Felipe.) Tira el poncho. (Felipe obedece. Pueden creer! Como un perro! ) La calça, ahora. (Felipe tira nuevamente, permanecendo de pié en frente al publico, solo zapatos con meya blanca y cueca samba-cançón.) Agora tape su propria boca con la mano derecha. (Felipe lo hace. Como un empleado. Un perro.) La otra mano, la izquierda,  sobre la careca. (Felipe hace esto). Atriz veste um “aparato de suspensão”, que vai tirá-la do chão. Hipnotizador faz um gesto forte em sua direção – atriz se eleva no ar, meio metro acima do chão – ele a “segura” lá em cima com o gesto. Suspensa, atriz dirige-se à plateia.) Ei, vocês acreditam? Até voar! Mas tô cansada de voar. Que coisa. Uma atriz dizer isso. (Hipnotizador passa a fazer o seu número, hipnotizando de verdade três pessoas da plateia que já estavam sentadas no sofá. Enquanto faz isso, atriz permanece no ar. Felipe permanece imóvel, mantendo o gesto de tapar a boca com a mão direita, a outra aberta sobre a cabeça. ) (Depois de seu número, hipnotizador acorda todos os participantes, menos atriz, ainda suspensa no alto, e Felipe, ajoelhado e com o mesmo gesto de cobrir a cabeça com a mão. Luz sobre ela e Felipe, que compõem, percebe-se agora, uma Anunciação. A cena silenciosa dura por um tempo. O hipnotizador se deita no chão do palco e assiste. Felipe se levanta e mostra a enorme barriga. Carrega uma pomba viva nas mãos. Atriz suspensa dirige-se explicitamente a Felipe.) Sim, você está grávido. Gêmeos múltiplos. O pai, caso você não saiba, é uma pomba. Que nunca encostou em você, Felipe, mas te engravidou assim mesmo. (Pausa) Em suma, você nunca amou. (Pausa) E por causa disso que você carrega na barriga (Felipe solta a pomba e abraça a própria barriga) uma multidão de defuntos vai matar uma multidão de gente viva. Verdade. Aspreitzinov. É preciso que você saiba. Tudo o que vimos aqui é verdade, como é verdade o que vem a seguir. (Pausa) As mulheres não recebem nada dos homens, Felipe, além de prazer. Carregam um pequeno anão, na forma de uma pulga, com todos os elementos necessários para formar um homem. Uma réplica. Um ator. E quando querem, aquecem essa pulga com a voz. Era uma vez. Com a voz. E a pulga torna-se um besouro. Aquecem esse besouro e ele se torna uma rã, e a rã uma serpente, a serpente um  cachorro, e assim por diante, até que um homem inteiro, escondido na pulga e na rã e na serpente e no cachorro, floresce. Um ator floresce. Não lhe dão leite, mas queijo; não lhe dão água, mas cuspe. Ainda não se move, nem pensa, mas tem a forma perfeita de um homem, e sabe atuar. A mulher (e para isso precisa do homem) então grita de prazer, e o menino se move. A mulher (e para isso não precisa do homem) então canta. O menino acorda e canta também. Canta junto com ela. (Felipe e atriz cantam Vai malandro em câmera lenta, em uníssono. Depois cantam Carolina. Hipnotizador desperta os dois.) (Hipnotiza a atriz e diz para ela) Vai lá e dá o seu texto. Boa sorte.  (Como no começo da peça, Diretor preenche o papel com o significado das vozes. Atriz volta à posição inicial e retoma sua fala inicial, até a primeira luz sobre a plateia.) Tô cansada da luz. Imagine uma atriz dizer isso. Tô cansada desse jeitinho de quem vai entrando, entrando, ninguém nota. Tem luz até no meu bolso, agora. Embaixo do meu mamilo. No meio das minhas coxas. Deve estar chegando no ovário. Luz. Luz. Um banquete de luz. Caralho. Por isso todo mundo acredita nela. Parece infalível. A merda eu vou dizer logo pra vocês. É que ela topa tudo, entendeu? A luz. Não tem nenhum discernimento. Topa iluminar a passista na avenida e também o pescoço daquele cara preso no poste porque roubou uma bicicleta. Tentou roubar. Uma bicicleta. Preso pelo pescoço. Com a própria trave da bicicleta, lembra? (Acende a luz sobre a plateia, forte. Atriz olha para ela).