Aqui ali (Robinson Crusoé)/2003

“Meu pai, homem sério e sensato, deu-me sábios e admiráveis conselhos contra o que previa ser o meu desígnio.” Assim começa o quarto parágrafo de Robinson Crusoé, indicando o movimento tenso, recheado de culpa e já apontando para um retorno, que vai atravessar todo o livro. É sob a maldição dos pais que Robinson, fugido, parte de York para uma vida errante, dissipatória não tanto da fortuna econômica quanto da boa sorte, que vai acabar por levá-lo à escravidão e ao naufrágio. Segundo ele, para seu pai, “era próprio de homens em situações desesperadoras, ou que aspirassem a destinos superiores, que partissem em busca de aventuras [...]; essas coisas estavam ou muito acima ou muito abaixo de mim; a minha era a situação intermediária, [...] a qual, em virtude de uma longa experiência, ele concluíra ser a melhor situação do mundo”, pois “sofria menos desastres e não estava exposta a tantas vicissitudes” (o grifo é meu). É contra esta situação intermediária que o jovem Robinson, na sombra de um irmão morto na guerra, abandonará os pais, entregando-se à maior das desmesuras: o mar.

Aparentemente, é o circuito arquetípico do herói que está sendo esboçado nesse início de livro – abandono da origem, aventura e volta ao lar ou, nos termos de J. Campbell, “separação, iniciação, retorno. Um herói, vindo do mundo cotidiano, se aventura numa região de prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; então retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus semelhantes”.1 Esta estrutura, associada ao tom fantasioso, típico dos relatos e novelas de sua época (reapareceria em seguida, por exemplo, nas novelas de Voltaire), é no entanto ameaçada desde logo por um sentimento difuso de catástrofe, de alguém que caminha para a própria perdição, num arrependimento recorrente que já aparece como distância e desencanto. Daí que suas aventuras transformem-se instantaneamente em maus presságios: Robinson é avisado por um quase naufrágio, ainda na Grã-Bretanha, mas decide prosseguir; torna-se depois escravo de um corsário turco de Salé, escapa, mas volta ao mar; prospera na costa brasileira, plantando tabaco, mas sai à procura de escravos na costa africana e naufraga, passando 28 anos em sua ilha. É contra o bom senso, mas sem abandoná-lo jamais, que sua história vai se construir. Ao contrário do herói, alguém surpreendentemente escolhido para uma tarefa de que não pareceria capaz, mas que desempenhará brilhantemente, Robinson é antes de mais nada um sujeito imprudente, que não conhece seus próprios limites – que não soube frear seus impulsos, não ouviu os conselhos do pai nem os da tempestade, não podendo estar portanto à altura dos acontecimentos. 

Não se transformará, assim, propriamente num herói, pois não passará por aventuras fabulosas, mas apenas desastres; não terá muito o que contar a seus semelhantes, quando retornar. Não se deixará levar por nada, não ouvirá o vento nem provará dos frutos mais estranhos de sua ilha. Ao contrário: trabalhará de sol a sol, todos os dias desde o primeiro, para refazer, minuciosamente, a vida que abandonou. Transformará o jardim do Éden no jardim de York, com suas cercas, suas colheitas, sua casa de campo, seus animais domésticos, seu cachimbo, suas passas, seu papagaio pronunciando o seu nome, numa espécie de antiaventura em que o herói recusa o que lhe foi ofertado, substituindo-o pelo que já tinha, como alguém que, diante do canto inenarrável das sereias, preferisse ligar, a todo volume, um aparelho de rádio em sua estação preferida. 

Esta operação, resultado de uma fidelidade canina a um modelo perdido, depende antes de mais nada de uma compreensão do tempo como matéria homogênea e infinitamente disponível. Como um presidiário, Robinson não tem direito a lazer, nem a sonhar, nem a divertir-se. Trabalha. Trabalha o tempo todo – para purgar sua culpa, para reconstruir, dentro do desastre e de um destino excepcional (que aparecem aqui como sinônimos), a condição intermediária que abandonara, tomando o tempo como combustível deste empreendimento. A ilha transforma-se rapidamente em testemunha da industriosidade de seu único habitante e o livro num make it yourself que ensina a reinventar cada objeto do cotidiano, a compreender como funciona e a produzi-lo por conta própria. O sentimento de segurança que a solidão de Robinson inspira há tanto tempo a seus admiradores2 talvez venha de um raciocínio propriamente comercial embutido no livro – com um pequeno investimento (aquilo que conseguiu trazer do barco naufragado, em quase duas dezenas de viagens, logo no início de sua estadia na ilha), você será capaz de suprir sozinho todas as suas necessidades, desde que converta 28 longos anos num relógio homogêneo e disciplinado.

Pois há um grande excluído no livro de Daniel Defoe, como uma tempestade que nunca cai: a Natureza. Esta não está verdadeiramen-te em lugar nenhum, pois tudo na personagem procura controle e soberania sobre ela, transformando-a em mãe comum ao lar que deixou e à sua condição atual, sozinho em sua ilha. Sabendo manejar seus recursos, a distância entre estes dois extremos será vencida, já que a própria Natureza se encarregará de unificá-los. À exceção do oceano, percebido desde o início como fonte insuperável de dissipação e desvio, todo o resto apequena-se diante da laboriosidade da personagem. As feras que temia no início transformam-se em cabras domesticadas; a fome em colheita; o desconforto em abrigo para longos dias de chuva. A natureza é aos poucos tragada pela moenda homogênea do tempo e do trabalho em que Robinson converte sua estadia – não é à toa que desde o primeiro instante inicie um calendário minucioso (ao cabo dos 28 anos, perdeu apenas um dia) e que o nome de seu único amigo (e servo) seja uma data.

No final do livro, obrigado a afastar-se do binômio que povoou sua solidão – o modelo original de York sendo minuciosamente reconstruído e o tempo desdobrando-se numa ocupação infinita –, o retorno de Robinson à companhia de terceiros transforma-se imediatamente em dissipação e violência. Nada parece interessar Robinson (a não ser, talvez, a amizade com Sexta-Feira), depois de 28 anos olhando a vida de longe. Nenhum rasgo de sabedoria para aplicar às dificuldades do presente, nenhuma hesitação diante da necessidade de agir. É apenas na solidão, entre aves e cabras, que a condição intermediária, afastada das vicissitudes e de tudo o que é imprevisível, impõe seu ponto de vista. Conforme sai de sua ilha, aumentando o seu círculo de relações – Sexta-Feira, seu pai, o espanhol resgatado, os ingleses, o capitão do navio –, Robinson vai aumentando o ciclo da dissipação e da violência. A partir de agora, perseguição, motim, escravidão parecerão mais naturais do que no início (em todo o livro, apenas o canibalismo causa verdadeira repugnância a Robinson Crusoé), quando por afastar-se de casa e do jardim de York cada aventura parecia um castigo. Agora que retorna tudo justifica-se – a medida intermediária, reencontrada na ilha, quer voltar para seu habitat de origem, naturalizando, em seu caminho, qualquer desmesura.

Mais do que A ilha do tesouro, mais do que David Balfour ou Arthur Gordon Pym, talvez seja Robinson Crusoé o livro de aventuras mais significativo de que se tem notícia. No entanto, nada ali é experimentado verdadeira-mente, a não ser a necessidade, e a possibilidade, de reproduzir, como em uma maquete, o mundo que deixamos para trás. Talvez seja este o segredo de seu enorme sucesso – mesmo que sejamos arrancados, por ambição, acaso ou azar, de nossa confortável condição intermediária, será sempre possível permanecer nela, reconstruindo minuciosamente, onde quer que estivermos, cada palmo de nossa vida anterior. Diante do mar agitado do que é diferente de nós, a ilha de Robinson estará sempre lá, brilhando como um farol, nos conduzindo de volta para casa, mesmo que, por 28 anos, fiquemos tão longe dela. 

O Estado de São Paulo, 14 de maio de 1994. Caderno Cultura. 

1. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, s/d, p. 36. 

2. O mais ilustre deles talvez seja Karl Marx, a quem este raciocínio não escapou: “nos-- so amigo, que salvou do naufrágio relógio, livros, pluma e tinta não demora, como bom inglês, a contabilizar todos os seus atos cotidianos”. Le Capital. Paris: Éditions Sociales, 1977, cap. 1, pp. 72-73.