Ao redor de Paulinho da Viola/2005

Para o Clima, o Rodrigo e o Rômulo 

1) Ele caminha como quem não toca o chão. Sua voz tem também esta característica pouco corpórea, fugindo às semitonadas, aos arranhados, ao sopro das respirações. Tudo nele, de fato, parece perfeitamente afinado – ou seja, conforme a um original, cedendo lugar a ele mesmo quando a composição é sua. O expressivo em seu canto é antes o encontro minucioso desta passagem até a origem – como se o intérprete fosse o zeloso anfitrião do compositor, cercando-o de cuidados a cada nota. Na verdade, a presença constante de um original é sua grande invenção, e exige uma transparência quase física, corpórea, em seu modo de an-dar, de cantar, de tocar, de falar das coisas. Sua maior coragem parece ser, a todo momento, fazer-se de vidro para acessar esta origem, resol-vendo sua angústia da influência pela própria influência. Poucas vezes a cultura brasileira orgulhou-se de uma origem cultural, e tantas vezes – Romantismo, Antropofagia – orgulhou-se de uma origem natural. Quase toda a nossa produção faz a média entre uma influência externa nítida e a terra arrasada de nosso quadro cultural que, transformado em natureza, deforma essa influência de modo poderoso, mas, o mais das vezes, passivo. Assim, Brasília faz, de certa forma, a média entre a vastidão nadificada do planalto central, que simboliza o vazio de nos-so quadro cultural, e a obra de Le Corbusier. Consegue, assim, surgir como que do nada, com colunas que elidem sua função de apoio para sinalizar melhor sua capacidade de destacar-se da origem. No trabalho de Paulinho, é como se o planalto tivesse se transformado num jardim cultivado – pelo tempo, pelo inumerável anônimo das rodas, terreiros, canções. A influência com isso ganha forma e nome próprio. Ao invés de buscar a imensidão sem contorno da natureza, Paulinho transforma a influência num interior, numa cena quase doméstica. 

2) Meu pai sempre me dizia, meu filho tome cuidado/ quando penso no futuro, não esqueço meu passado; E seu doutor, o meu pai tinha razão; Tá legal, eu aceito o argumento; As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender; E muito mais você me deu/ um tempo precioso, esquecido; Não sou eu quem me navega/ quem me navega é o mar; Faça como o velho marinheiro/ que durante o nevoeiro/ leva o barco devagar; Devagar, devagar, devagarinho: é longa a lista de alusões a um pai, a uma origem, a uma conformidade ao que se fez antes dele. Como um segredo que vem à tona a cada verso, o eu lírico é filho, e – esta é toda a sua originalidade – parece satisfeito com sua condição. Esta minorida-de feliz responde por grande parte da novidade do trabalho de Paulinho da Viola, e precisa ser pensada – ela sim – em termos novos. Pois não se trata, como o próprio autor tantas vezes indicou, e o filme produzido recentemente (Paulinho da Viola: meu tempo é hoje, de Isabel Jaguaribe) exacerbou, de defender-se de uma acusação difusa de passadismo. Faz parte apenas de sua originalidade poética mirar num modelo, numa origem, e relacionar-se com isto com extrema precisão. Sim, porque algo em seu modo de cantar e de compor parece, antes de mais nada, exato e preciso. Mas esta precisão não vem da fidelidade estrita, mecânica, a um modelo prévio, ao contrário: vem de encontrar nota a nota, acorde a acorde uma medida (que varia a cada canção) em relação a este modelo, de suspendê-lo até certo ponto, deixando que permaneça ali mas deslocado, redescoberto e novo. Pois não é tanto a mais usual potência genérica de felicidade coletiva do samba que está aqui (embora também esteja), mas um efeito de distância em relação a ela, dissipado em cada nota, um pouco como a atmosfera azulada com que Leonardo pintava o que é longínquo. Quem souber compreender esta distância, esta atmosfera, terá acesso a grande parte de sua poesia. Para exaltar o que já é, já está (o modelo), é preciso mantê-lo à distância correta, nem muito perto, nem muito longe. Assim, encontrar este lugar para o modelo, a proporção correta de exaltação e de tristeza, de homenagem e de perda, terá sido talvez a sua intuição primeira. Isto marca toda a diferença com o ressentimento que tantas vezes vem da cultura do samba, de tanta gente traída alardeando a própria fidelidade. Não, em seu trabalho não há retrato amarelecido clamando por direitos – há uma voz que canta ao longe e elogia essa distância, canta pedindo que a mantenham ali.

3) Suas canções, muitas vezes, não falam propriamente de nada. Se um dia meu coração for consultado/ Para saber se andou errado/ Será difícil negar/ Meu coração tem mania de amor/ Amor não é fácil de achar/ A marca dos meus desenganos ficou, ficou/ Só outro amor pode apagar, quem poderia imaginar que este início, em si mesmo bastante vago, conduziria à exaltação de uma escola de samba entrando na avenida enquanto o dia nasce? Cavar um buraco no sentido, um hiato, fazer a canção andar de lado, perdendo o foco central, é um dos seus recursos mais constantes – e a riqueza harmônica de suas composições parece um instrumento fundamental neste processo. Esta capacidade de não ter um assunto preciso, presente em tantas de suas melhores canções (“Samba curto”, “Para ver as meninas”, “Dança da solidão”, “Para um amor no Recife”), é indício, antes de mais nada, de um gênero maduro (o samba), já capaz de qualquer abstração, e dá talvez a Paulinho da Viola, em relação a ele, um lugar parecido com o de um simbolista tardio, como Paul Valéry, em relação à poesia francesa, ou um pintor como Morandi em relação à tradição pictórica italiana. Faz dele, também, um discípulo de Cartola, de canções como “Acontece”, que parecem ter afirmado este tom reflexivo, voltado para as modulações do pensamento, distante do canto-falado das situações concretas da vida. O espaço destes trajetos desviantes é enorme, como um largo terreiro cavado a cada canção, e deve render muito ainda. Mas, de novo, para desviar é preciso encontrar a proporção correta entre perder-se e saber retornar – as regiões intermediárias da aventura. E é por isso que tanto da sua poesia faz o elogio do que está no meio – a começar por “Foi um rio que passou em minha vida”, que citei no começo deste parágrafo. A Escola que traz a alvorada é de um azul que Não era do céu/ Não era do mar/ Foi um rio que passou em minha vida. O rio é o pequeno infinito, que vai entre os dois grandes infinitos, o céu e o mar. Este pudor em relação ao que é desmesurado atravessa toda a sua obra: Porque hoje eu vou fazer, ao meu modo eu vou fazer, um samba sobre o infinito – para cantar a palavra “infinito”, é preciso pedir licença duas vezes. 

4) Hoje eu quero apenas uma pausa de mil compassos. Este verso atinge outro núcleo poético seu: a necessidade de um intervalo, de um hiato, de uma fuga à presença. É preciso lembrar que seu trabalho nasce na segunda metade dos anos 60, quando tudo era solicitação, gestos decisivos, praça pública. Às manchetes, às texturas da banca de jornal, ele oferece a possibilidade de uma distância, o eco do que é remoto; ao aqui e ao agora, o ali e o nunca. Neste sentido, Paulinho da Viola é uma voz solitária em sua geração, distinguindo-se nitidamente, e até mesmo se opondo, aos dois principais modelos contemporâneos seus: o Tropicalismo e Chico Buarque. Pois se no Tropicalismo tudo pode e deve ser dito, é que fará sentido enquanto fragmento de um todo nunca formado, mas sempre se fazendo, pressuposto pelo compositor. Uma espécie de hipérbole do sentido se faz possível através deste todo, que manteve força extraordinária enquanto unificou simbolicamente a cisão das grandes tensões nacionais dos anos 60, e que parece ter perdido energia a partir do final dos 70, quando estas tensões se aquietaram. De toda forma, o presente parece ao Tropicalismo uma casa-forte a ser conquistada, e um sentido de urgência extrema anima as suas vozes, situando-o assim nos antípodas do trabalho de Paulinho da Viola. Em Chico Buarque, por outro lado, há a consciência de questões semelhantes às que dominam o trabalho de Paulinho da Viola, a ponto de lhe ter talvez servido de referência em alguns momentos. Mas Chico pertence justamente a este plano da consciência, com os recursos, as vantagens e as desvantagens disso. Vale-se, assim, desde o início, com inacreditável virtuosismo, dos extremos da canção-do-presente, engajada, e da canção-do-passado, lírica, alternando-se entre eles. Nasce daí uma claustrofobia de fundo, uma vontade de fuga, que domina tantas de suas canções, explicitada, em especial, na circularidade desatinada de versos formalmente reversíveis (casos modelo seriam canções como “Deus lhe pague” ou “Roda viva”), que, quanto mais escala a melodia, procurando escapar, mais aprisiona o cantor. Algo em Chico Buarque (inclusive em seus livros) quer, literalmente, achar a saída – todo o seu trabalho parece procurar uma descarga que unificasse ou superasse esta consciência dual, dividida entre a presença sem tempo (“Morena dos olhos d’água”) e a urgência do tempo (“Construção”). Em seus melhores momentos, como em “O que será” ou “Valsa brasileira”, esta superação parece desenhar-se. Em Paulinho da Viola, ao contrário, tudo é saída e fuga, e parece unificado pelo afastamento de um agora ao qual já de cara não se refere. Sei que, explícita e pessoalmente, refugia-se no gênero (Choro, Samba), como representante de uma tradição; esta é sua resposta mais fraca, que tantas vezes utiliza em entrevistas e que o filme recente, ao tentar reverter, sedimenta. Implicitamente, no entanto, ou seja, nas composições mesmas, e esta é sua resposta forte, enuncia a cada acorde sua distância, seu lugar desencontrado, sua própria autonomia. Pois o outro nome deste sentimento de distância a que venho me referindo, não apenas em relação ao modelo cultural, mas às demandas do tempo, é autonomia, e esta autonomia é que precisa ser hoje reavaliada, e talvez louvada – sua capacidade única de recusar o que recusou e de olhar para onde olhou. Como uma biografia cujos marcos fossem não-acontecimentos, coisas que o biografado não fez, o trabalho de Paulinho da Viola soube ausentar-se. Por isso talvez canções como “Samba curto” ou “Para um amor no Recife”, ouvidas hoje, ganhem uma densidade inacreditável. A que tempo pertencem? A que gênero pertencem? Em que época foram feitas? Logo elas, que tanto espaço cederam a sua origem, parecem hoje cavar o seu lugar do nada, com a força dos recém-nascidos. Todo o trabalho de Paulinho da Viola é uma astúcia diante do tempo – a operação de distância em relação à origem parece ter-se transportado naturalmente para uma operação de distância em relação ao agora, extremamente rica e profunda.

5) Samba. Basta pronunciar esta palavra, espécie de madeleine coletiva brasileira, para que brote um número enorme de significados. Gostaria de isolar dois sentidos bastante genéricos deste termo. A) Antes de mais nada, samba é o lugar onde os excluídos se dão bem, o reino afirmado do prazer e do ardil, espécie de duplo onde o trabalho é driblado e o ócio vence. A este primeiro sentido, dominante (mas não exclusivo) no trabalho de Noel e de seus grandes pares, corresponde uma dicotomia formal, interna à estrutura da canção – o trabalho e o ócio devem estar presentes ao mesmo tempo, a regra e a fuga à regra, a norma e a violação da norma. Esta característica organiza formalmente o samba malandro, e justifica as suas infinitas modulações, que procuram sempre expressar uma alternância constante entre a norma e o jeitinho – daí, por exemplo, a exacerbação do ritmo sincopado, que demora e insinua, criando uma segunda leitura em relação ao sentido da canção, ou o breque, que comenta e desfaz, numa voz que vem de fora, o que poderia ter se fixado exageradamente. Este é o mundo onde o indivíduo vence o trabalho – mas como o trabalho é ele mesmo tacanho ou pouco sério, a paródia e o humor dão necessariamente o tom, e o compositor acaba mimetizando esta relação fluida nas modulações de seu canto. B) A este primeiro sentido da palavra samba, que tantos já elaboraram e que ocupa um lugar dominante em nossa cultura, talvez fosse possível opor um segundo, menos freqüente: aquele onde o trabalho miserável se impõe ou se ausenta de uma vez – o samba de quem perdeu, do desempregado ou de quem se presta a sub-empregos, de quem não soube ou não pôde ou não quis dar um jeito. Como não há dualidade aqui, não há norma vencida pela astúcia malandra, a mudança lírica é grande, e a estrutura da canção se aquieta, perdendo velocidade e ginga. Desobrigado de vencer, de mostrar, pelo samba, que está vencendo, o sambista entristece, segue calmamente a própria melodia e mergulha na alvorada, nas folhas da mangueira, na madrugada fria, na mulher perdida e reencontrada. Faz parte da grandeza de Noel e de seus pares pertencerem também, embora de modo recessivo, a este segundo grupo, mas não há dúvida que é no trabalho dos sambistas cariocas dos anos 40 a 70, especialmente em Nelson Cavaquinho e Cartola (mas sem perder de vista boa parte das composições de Zé Kéti e Monsueto, e o caso singular de Batatinha, na Bahia), que esta visão de mundo vai se firmar. Um luto de fundo ganha corpo com eles, uma estranheza melódica, uma poesia elevada, shakespeariana-popular, que raia às vezes o mau gosto, uma disponibilidade para o sol, a luz, a chuva, tomados como entidades abstratas, cósmicas, uma relação desconexa com o próprio tempo, que parece não vir de nenhum lugar nem dirigir-se a lugar algum. Se em Noel o agora está sinalizado em toda parte e o concreto entra na canção pela porta da frente (por exemplo, nas palavras à beça, patente, cinema falado, média que não seja requentada ou nas máximas irônicas tiradas do dia-a-dia, como o famoso São Paulo dá café, Minas dá leite e a Vila Isabel dá samba), aqui o isolamento é a norma e os substantivos são quase sempre genéricos ou abstratos. O concreto é que parece ter sido posto para correr, e uma visão abstrata de mundo acolhida em seu lugar. Quem viu o documentário de Leon Hirszman sobre Nelson Cavaquinho (de 1968) terá percebido a situação insular, mas plena, do compositor – de cabelos brancos e sem camisa, Nelson toca, usando na mão direita apenas dois dedos, um violão fascinante, canta como deviam cantar as parcas gregas, bebe (muito) e perambula, como um peregrino doméstico, num mundo próprio sem qualquer referência externa. Não há rótulo na cerveja, quase nenhum nome de mercadoria aparece no filme, ninguém está totalmente sóbrio. Tudo parece suspenso num tempo infantil e deprimido – de cantoria, de crianças que tomam cerveja, de galinhas dentro de casa. É esta suspensão que Cartola e Nelson Cavaquinho procuram transformar em reinado, e cantar. É a liberdade deste esquecimento, uma certa glória de ser esquecido, que alimenta seus sambas. E é desse lugar que vem o principal do trabalho de Paulinho da Viola. 

6) É claro que há também a bossa-nova, e essa espécie de cosmopoliti-zação nacional sem dor que parece inicialmente anunciar e cumprir. Não é preciso retirar de Paulinho da Viola esta origem, que também é sua – como não perceber as modulações do canto de João Gilberto no seu, e a complexidade harmônica de Tom Jobim em tantas das suas composições? Além disso, há uma serenidade de fundo em seu trabalho e em boa parte da bossa-nova. É que talvez a consciência dos entraves a essa entrada desimpedida do país no capitalismo avançado, na segun-da metade dos anos 60, tivesse já de alguma forma destemporalizado a bossa-nova, pondo-a em suspensão. O fracasso do projeto desenvolvi-mentista guardou na gaveta a rolleiflex de Tom Jobim e Newton Mendonça (que o tropicalismo tentará continuamente desengavetar) – e, para isto, Paulinho da Viola estava instintivamente pronto, atento.

7) Há duas ausências claras em seu trabalho: a paródia e a equalização pop. A soma dos dois recursos deu, a partir dos anos 60, velocidade à canção popular brasileira, ampliando suas personagens e referências, pondo-as para circular, tornando-as acessíveis, franqueando seu alcan-ce para o público e para os compositores. Mas esta velocidade de circu-lação e fusão parece estar chegando a uma espécie de conclusão fatal: o embotamento do que é único, do que é singular, do que é ímpar, como se a parte não pudesse sequer durar o suficiente para contrapor-se ao todo. O assunto é imenso: muito da leveza e da alegria dos Beatles terá vindo desta equalização ou indiferenciação entre a alta e a baixa cultura, entre o juvenil e o adulto, o masculino e o feminino, o alegre e o trágico. Assim, suspensos estes opostos, suas canções podem visitar em movimento o que antes delas parecia fixo e determinado. Como num ônibus londrino de dois andares, circulamos entre destroços e alegrias, apontando o dedo e nos sentindo seguros. O mundo é uma série de vitrines, que experimentamos desde uma distância serena, sem sequer perceber o vidro. De alguma forma, esta energia leve, descompromissada mas empática, dependia da velocidade constante e harmônica do veículo, que deve mostrar e fazer esquecer, seguindo adiante, num ritmo preciso. Mas com a aceleração sem fim das últimas décadas, não há propriamente mais nada lá fora para ser freqüentado – a velocidade extrema do veículo quase impede o acesso ao que acontece fora dele, como detalhes de uma paisagem que tentássemos distinguir de uma veloz auto-estrada. Com certeza, no trabalho de Paulinho da Viola a diferenciação entre os opostos permaneceu de pé. Há papéis clássicos que não são tocados, sinalizações explícitas entre o que é elevado e o que é jocoso, entre o que é masculino e o que é feminino, entre a alta e a baixa cultura, entre o que é de brincadeira e o que deve ser levado a sério. Por isso uma grande sobriedade organiza suas canções, lenta demais para o sistema de equivalências que governa o mundo pop. A paródia, artifício fundamental na cultura brasileira para levar adiante este projeto pop, também não aparece nunca. Aqui, riso é riso e choro é choro. Mais choro do que riso.

8) O tempo a que Cartola e Nelson Cavaquinho se referem não é antigo, mas extemporâneo. Não é bem o passado dourado, mas alguma coisa mais longínqua. No caso de Nelson, especialmente, o que se contrapõe à vida atual não é uma vida melhor, mas uma vida morta. É a morte que nasce em suas canções de uma forma que a canção brasileira não conhecia ainda. Vivo tranqüilo em Mangueira porque/ Sei que alguém há de chorar quando eu morrer: a morte, a possibilidade de ser carpido, torna a vida suportável. Suas melodias estranhas, que explicitam os movimentos lentos de subida e de descida, arrastam o ouvinte para uma duração viscosa, onde cada nota deve ser palmilhada como os passos da cruz. Esta intuição verdadeiramente trágica, que pouquíssimas vezes a cultura brasileira alcançou, oferece sem dúvida um pólo gravitacional para o trabalho de Paulinho da Viola, que se retrai diante dela e procura um ar mais rarefeito e sublimado. Ouvir Paulinho da Viola cantar Nelson Cavaquinho (“Duas horas”, “Depois da vida” ou “Mocidade”), Cartola (“Amor proibido”) ou Zé Kéti (“O meu pecado”, em parceria com Nelson Cavaquinho) é sentir o peso gravitacional desta intuição ganhar beleza e elevação (e é difícil imaginar esta operação sem a existência da bossa-nova), sublimando-se. Neste sentido, é como figura tardia de um gênero já formado que seu trabalho de fato se firma – como seu principal momento abstracizante, que o eleva a seu cume poético, cobrindo enfim todo o arco do possível, desde o mais banal jogo de cartas até a metafísica do nada. Para isto, porém, teve de renunciar àquele entrar e sair da vida que caracteriza o samba malandro para focar no samba lírico, denso, que chamei de samba de quem perdeu. Este lugar já estava ocupado pelos sambistas-paternos que o cercavam desde menino, e será em relação a este lugar já formado que buscará a distância exata. 

9) Um pouco como na arquitetura grega, o samba para Paulinho da Viola é um modo (dórico, jônico, coríntio), cujas leis não impedem a singularidade extrema de cada templo. Há nisto uma compreensão profunda de certos dilemas contemporâneos, em especial aqueles relativos à procura pelo Novo: todas as linguagens, a partir da crise das vanguardas dos anos 60-70, parecem ter estendido os próprios contornos a tal ponto que as obras singulares perderam seu poder de negá-los ou alargá-los significativamente, às vezes de tocá-los sequer. Assim, a procura pelo Novo, que guia ainda a arte contemporânea como guiava a arte moderna “clássica” antes dela, passa a sofrer uma mediação imprevista, tendo de singularizar-se poeticamente sem enxergar claramente os contornos lingüísticos que utiliza – ou seja, ambientando-se, ainda que às cegas, dentro da linguagem, e não caminhando nitidamente para fora dela. O trabalho de Paulinho da Viola, com seu aparente descaso pelo novo, antecipou-se a isto. 

10) Vista assim do alto/ Mais parece um céu no chão. A letra de Hermínio Bello de Carvalho diz a um só tempo o lugar de onde seu parceiro sempre olha (do alto, de algum lugar poupado do que é imediato) e o que vê ali de cima (um céu no chão). É este o prêmio para quem soube recusar as oferendas do tempo: uma imagem guardada, o possível preservado. Este lugar que preserva mas mantém-se acessível a uma comunidade pode ser chamado de tradição (palavra que faz parte do vocabulário do mundo do samba), mas talvez seja melhor chamá-lo de mito, compreendido como uma espécie de vida coletiva paralela, onde memória e real se confundem num amálgama que o presente não pode mais roubar. O mito de alguma forma parece poupado do tempo e o samba, entendido em seu sentido mais genérico, inclusive como forma concreta de vida de uma comunidade, ganha no trabalho de Paulinho da Viola uma nitidez de contornos, uma solidez, uma sobriedade que só o mito possui: a roupa branca, a forma sinuosa dos instrumentos, o chapéu de palha, o nome dos sambistas mortos, as vozes das pastoras, a palavra morro, a palavra terreiro, a palavra escola, o feltro verde da mesa de bilhar não são apenas itens ou personagens de um mundo étnico, folclórico, cultural; são entidades. Claro que esta construção é coletiva, herdeira de um século de canções anônimas, populares, mas é em seu trabalho que ganha uma estratégia crepuscular e, quem sabe, definitiva: deslocar nossa origem e o que nos parece urgente para um fundo azulado onde os gritos são eco, os gestos são sombra e a história um rumor – e, de lá, cantar.