Agouro e libertação (Oswaldo Goeldi)/1994

 Oswaldo Goeldi, Rua molhada, sem data. 

Abandono e esquecimento formam o eixo do trabalho de Goeldi: latas derrubadas, cães vadios, móveis ao relento. No entanto, pelo fato mesmo de não serem lembradas, as coisas parecem aqui ainda preservadas da mesquinhez, cheias de mistério e de potência. Aquilo que foi deixado de lado está inteiro, pronto para ser acionado, e o vento que bafeja essas gravuras quer acordar os homens, bichos e lugares, chamando-os à vida. Sua feição, no entanto, não pode ter a solidez e clareza objetiva de quem os esqueceu. Daí o crepúsculo contínuo e sempre renovado desses trabalhos.

A tristeza que resulta daí não aparece como atributo, mas condição. Por estar em toda parte não está em lugar nenhum, mas numa espécie de agouro sistemático que um urubu pousado (as aves de Goeldi pertencem ao chão) ou uma ossada apenas ilustram. Curioso é que essa tristeza apareça banhada, não encontro termo melhor, numa estranha calma. 

Oswaldo Goeldi, Recanto abandonado, sem data. 

Oswaldo Goeldi, Tarde, 1954. 

Para compreender isso será preciso descrever o duplo movimento, aparentemente contraditório, que esses trabalhos percorrem. De um lado, há uma espacialidade acentuada, algo metafísica, que isola os seres e torna os lugares profundos, maiores do que cada um. O primado do espaço sobre as coisas dá a elas um fardo de finitude e solidão, ao mesmo tempo que aproxima os elementos narrativos da condição de símbolos. Urubus, caveiras, lanterneiros, peixes, são personagens cíclicos de um mundo estruturado para recebê-los, povoando pátios, ruas e becos e acrescentando à espacialidade desencarnada pequenos comentários lúgubres. Assim, num primeiro momento, tudo no mundo de Goeldi parece triste, isolado e caminha para a morte.

No entanto, encantamento e suspensão caracterizam também essas gravuras e desenhos. Isso vem, creio, da intensa analogia formal entre seus elementos. Cheios são vazios, casas são ruas, urubus são guarda-chuvas, as janelas nos olham. Tudo é meio assemelhado a tudo, bafejado pelo mesmo sopro de vida, as formas ecoando discretamente umas nas outras, como se ainda não tivessem se formado de todo. Essa individuação incompleta faz grande parte da originalidade de Goeldi, e permite que as distorções expressionistas que o influenciaram abdiquem de seu desespero. O mundo de Goeldi é um mundo em suspensão, seus habitantes ainda despertam e se procuram, e se caminham para a morte o fazem solidariamente. Daí a calma de sua tristeza, onde abandono e comunhão convivem. 

Ancorado, dessa forma, numa espacialidade acentuada, com indicações de profundidade bem marcadas, que aumentam a fantasmagoria e o isolamento e, de outro lado, numa intensa comunhão formal entre os elementos, o trabalho de Goeldi reúne movimento e solidez, vento e pausa, dilaceramento expressionista e calma oriental. Através dessa dupla raiz o expressionismo de origem é superado. Solidão e tristeza deixam de ser propriamente expressivas para elevarem-se a uma condição exemplar, a de atributos adormecidos porém essenciais da nossa natureza. Tudo em seu trabalho participa dessa qualidade, desde os homens (quase sempre pobres-diabos) até os cachorros humildes, as latas vazias, os paralelepípedos. Não há foco ou hierarquia e a presença humana espalha-se num entorno também ele vivo e movente. Esquecidos ali, sem finalidade prática, os seres esparramados se encontram. São restos, pedaços e detritos que um vento metafísico juntou.

Mas é na estranha luminosidade das xilogravuras de Goeldi que a maior parte dessas questões encontra um centro comum. Como uma janela pintada de preto, o negro bloqueia a luz que vem de trás, e o que vemos é aquilo que vaza por suas frestas, pelos sulcos do desenho, numa fosforescência que parece poder se apagar a qualquer instante. Assim, se de um lado a luz visível é discreta, quase fantasmagórica, como que incapaz de traçar os contornos com nitidez, de outro a luz sugerida por trás da massa negra parece potente e constante. O visível surge como a discreta ordenação desse sol cegado de início pela superfície negra de onde se partiu. Cavar demais a madeira significaria desordem e caos, e a precisão do traço de Goeldi vem dessa extrema contenção. A noite deixa de ser o avesso complementar do dia e da luz para se tornar princípio formalizante da claridade caótica. A potência cega da luz, ponto de origem do trabalho, deve ser controlada para que os seres possam propriamente aparecer. As gravuras de Goeldi ganham assim o aspecto de um clarão contido, já que o mundo tem seu fundamento numa luz desmesurada e destrutiva que a tristeza, a solidão e a noite transformam em contorno, corpo e vida.

Goeldi nos mostra a periferia do mundo, seus subúrbios, funcionando em lógica própria, noturna, algo alucinada e, quem sabe, indiferente aos valores diurnos. Trata-se da promessa de uma nova disposição, após a tempestade, onde as ratazanas tenham a mesma dignidade dos homens, os cestos de lixo se equiparem aos casacos de pele etc., ou seja: aquela reordenação hierárquica própria às catástrofes naturais (as cenas de Goeldi parecem sempre preceder ou suceder a tempestade). Em movimento, debaixo de chuva e de vento, os seres perdem o rigor mortis e abrem seus contornos a similitudes e passagens insuspeitadas. Se a catástrofe em Goeldi é bela é por originar esta desierarquização entre seres e coisas, homens e animais, natureza e social. Como as personagens de Dostoievski, que tão brilhantemente ilustrou, os seres de Goeldi são sobreviventes, parecem ter direito a uma segunda chance e carregam, em sua tristeza e contenção, uma espécie de culpa assimilada. A Queda oferece redenção a quem caiu. Talvez venha daí sua predileção por bêbados e desequilibrados. Fora de prumo, são mensageiros da passagem, seres em transição e movimento, prontos para chegar em algum lugar. 

Mocambos (paraGoeldi 3)

Produzida para o “Clube da gravura” do Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 2003, a série “Mocambos” é resultado da sobreposição entre desenhos e gravuras de Goeldi e fotografias de lugares a eles assemelhados, na cidade de São Paulo. Durante alguns meses, saí com uma câmera e um livro de Goeldi, procurando coincidências (fachadas, janelas, postes, uma chaminé, a torre de uma igreja). Depois, em Photoshop, as imagens foram sobrepostas. Um pequeno catálogo com sete “Mocambos” foi impresso pelo museu (com desenho gráfico de Sandra Antunes Ramos), além de uma serigrafia.1

Fábio Miguez – Deriva, organização de Alberto Tassinari. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

1. A exposição “paraGoeldi 1” foi realizada na Galeria as studio, São Paulo, em 1996, e a “paraGoeldi 2” na Casa Vermelha, Curitiba, em 1999. Ver Nuno Ramos, Noites Brancas, Curitiba: Casa da Imagem, 2000, pp. 102-125 e Alberto Tassinari, Lorenzo Mammì e Rodrigo Naves, Nuno Ramos, São Paulo: Ática, 1997, pp. 156-159.