A terra (Euclides da Cunha)/2001

Como se sabe, Euclides abre seu livro olhando para o chão desde a órbita dos satélites e das space shuttles. Grandes distâncias, placas con- tinentais, aqui Minas, ali Goiás, o mapa brasileiro vai ganhando funda- mento e unidade geológicos, numa prosa difícil em seu vocabulário especializado, mas arrebatadora em seu estranho entusiasmo. Afinal, não é a partir de acidentes naturais (cachoeiras, lagos, rios) que ela     se desenvolve, mas diante da extensão pura e simples, do estar aí não qualificado deste país enorme. No fundo, o propósito desta abertura, com seus grandes zooms e sua visão desde a estratosfera, é justamente reconstruir o país cindido por uma quase guerra civil, pelos boatos, pelas degolas em Canudos, pela tentativa de assassinato de um presidente, pela Revolta da Armada no Rio, pelo movimento sedicioso no Sul,  por uma República que nascia, enfim, confusa e sangrenta. A grande nova deste início é justamente haver um país – por trás de toda a má- fé a ser exorcizada no resto do livro, há aqui, literalmente, um solo comum, um único e mesmo lugar, continental, mas unificado em suas relações. Daí que a lente seja poderosa demais, distanciada demais – fica difícil para o leitor saber onde está, ou diferenciar uma parte da outra. A potência épica do vôo de abertura vem desta euforia geológica de pertencer a um único estrato – quem narra, afinal, narra o mesmo solo, supra-humano mas comum. O texto tende, por isso, sempre às grandes unificações, relacionando geologicamente o país inteiro, em bacias, elevações, chapadas, descrevendo-o como um corpo indiviso de partes mutuamente influentes, numa reconstituição geológica do que  a história recente parecia ter cindido, espécie de desagravo mineral ao ato humano. O fato de haver terra, sólida e contínua, basta ao sopro épico, pois contrapõe-se em sua enormidade silenciosa ao burburinho de nossa história recente. Serve, na verdade, como elemento neutro, solene e inerte, intocado pela confusão dos homens. Daí que o traço principal destas primeiras páginas seja justamente a falta de escala, como se desde o início a medida humana tivesse sido expulsa – estamos sempre longe ou perto demais, em grandes passos de gigante sobre o mapa ou palmilhando minuciosamente a paisagem, as descrições em sobrevôo quase idênticas às de muito perto. “E avançando célere [...]  o viajante mais rápido tem a sensação de imobilidade. Patenteiam-se- lhe, uniformes, os mesmos quadros, num horizonte invariável que se afasta à medida que ele avança” [p. 86, grifo meu].1 A terra nada tem  com os homens. Ela os precede e não se deixa relativizar por eles, e é nessa indiferença que vai caracterizar-se – afastando-se enquanto eles avançam.

A esta monotonia espacial virá contrapor-se a diferenciação no tempo. Uma vez garantida a unidade do lugar e o nexo quase corpóreo entre as quatro direções – ou entre o alto e o baixo, o planalto e a escarpa, o interior e o litoral –, é a contraposição do recente e do arcaico que se encarregará de criar uma primeira diferenciação. Esta contraposição vai atravessar todo o livro, enraizando-se profundamente na terra,    no homem e na luta, sendo apresentada já nas primeiras páginas: “as formações primitivas desaparecem, mesmo nas maiores eminências, e jazem sotopostas a complexas séries de xistos metamórficos” [p. 74]; “as camadas anteriores, que vimos superpostas às rochas graníticas, decaem, por suas vez, sotopondo-se a outras, mais modernas, de espessos extratos de grés” [p. 75]; ou ainda “as cordilheiras dominantes do Sul ali se extinguem, numa inumação estupenda, pelos possantes estratos mais recentes, que as circundam” [p. 75, os grifos são meus]. O tempo, na elasticidade monstruosa que tem para Euclides, geológico e cambriano, mas contemporâneo também da locomotiva e do telégrafo, faz sua aparição aqui, instituindo um primeiro conflito no repouso horizontal das grandes placas continentais – de certa forma, são as aporias da mor- te, ponto de convergência de todo o livro, que estão sendo introduzidas neste confronto do antigo com o novo. Sem isto, o solo permaneceria inerte e inexpressivo. Seu conflito (o “dédalo de serranias tortuosas”,   o “tumultuar de morros, incoerentemente esparsos” [p. 79]) vem da coabitação entre etapas evolutivas diversas, numa luta irremediável que, mais adiante, aplicada às raças, será responsável pelo social-darwinismo, de fundo racista, concentrado em especial no segundo capítulo, mas que produz agora efeito diverso (porque dinâmico), aplicado à Terra. Pois ela ganha, assim, um princípio ativo em suas “camadas cretáceas decompostas” [p. 82], em seus “terrenos terciários esterilizadores”, em seus “contornos de encostas estaladas, exumando a ossatura partida das montanhas” [p. 83].

No entanto, e este ponto é fundamental, desta atividade telúrica conhecemos apenas o registro fóssil, a cicatriz cravada num corpo que já morreu (como se vê pelos exemplos acima, cujos frisos são meus). Para Euclides, de certa forma, a própria terra já morreu, arrastando consigo tudo o que foi ativo em sua superfície. Como numa lição de anatomia, é à exumação de seu cadáver que estamos assistindo neste primeiro capítulo. É certo que o resultado desta exumação indica a presença conflitante de estágios evolutivos diversos, entranhando nela o signo da luta,2 e que o relógio evolutivo aparece cravado já dentro dela. Mas deste destino conhecemos apenas o registro fóssil, e se há conflito (como aquele que será narrado no terceiro capítulo), ele nada modifica e conduz apenas, inevitável e irrevogavelmente, à “confusão pasmosa” [p. 97] descrita em tantas páginas. Mais do que palco (como queria Mário Cavalcanti Proença),3 a Terra é o túmulo de todo ato, preservando-se dele. É nesta impermeabilidade, nesta desmesura com a história que Euclides parece apoiar-se para iniciar seu livro – todo ele, no entanto, uma tentativa de redimir-se diante desta mesma história.

Daí que a idéia de ciclo seja essencial ao seu pensamento, podendo ser descrita como o modo operativo por excelência da terra – um retorno perpétuo do mesmo, diante do qual nada podemos.  É assim que os caracteres geológicos e topográficos “persistem nas influências recíprocas. Deste perene conflito feito num círculo vicioso indefinido, ressalta a significação mesológica do local” [p. 101]. É assim que “A terra desnuda tendo contrapostas, em permanente conflito, as  capacidades emissiva e  absorvente dos materiais que    a formam, do mesmo passo armazena os ardores das soalheiras e deles se esgota, de improviso” [p. 103]. E a seca, o grande fenômeno dos sertões, não poderia ser descrita senão como um relógio trágico: “De fato seus ciclos [...] abrem-se e  encerram-se com um  ritmo  tão notável, que recordam o desdobramento de uma lei natural, ainda ignorada” [p. 110]. Trata-se de um fenômeno em moto- perpétuo, já que “a insolação rescalda intensamente as chapadas desnudas, e sua própria intensidade origina um reagente inevitável” [p. 114]. Esta idéia de ciclo, de  um  circuito auto-suficiente que leva a uma continuidade inalterada, dispensa os seres (plantas, bichos, homens) de qualquer participação no “círculo vicioso das catástrofes” [p. 163]. Ele é tão explícito quanto inevitável, e saber o calendário das secas (com intervalos entre nove e doze anos) apenas aumenta a fatalidade de seu retorno.

Mas há nuanças neste movimento. Se atentarmos para o tema da retenção das águas, central neste capítulo, veremos que opõe as plantas e os próprios homens à terra árida. Sim, pois é próprio da terra, talvez seu principal traço distintivo, permanecer deserta mesmo com o desaguar violento das chuvas – tão violento que não chega a penetrá-la, perdendo- se em torrões desbarrancados ou evaporando-se, fantasticamente, em pleno ar: “As primeiras bátegas despenhadas não atingem a terra. A meio caminho se evaporam entre as camadas referventes que sobem, e volvem, repelidas, às nuvens [...]”, [p. 115]. Reagindo a isto, as plantas do sertão especializaram-se em reter as águas através de artifícios diversos – enraizando-se excessivamente no solo (“uma árvore única e enorme, inteiramente soterrada” [p. 119]),4 ampliando as folhas ou os caules para aumentar a capacidade de recolhimento do líquido, propiciando a condensação dos vapores, aumentando a absorção pelas radículas   e, até mesmo, transformando-se em “plantas sociais” [p. 121] para vencer o inimigo. Há, nesta vegetação, como se vê, “um traço superior à passividade da evolução vegetativa” [p. 122], que as aproximaria do reino animal e do homem. Este seria o principal retentor de águas, opondo-se assim à característica central da terra-cadáver, o desfazer-se da água num ciclo interminável.

Neste sentido, num livro onde tudo é contraste, combinação de opostos e oxímoro, não é de estranhar que o sertão apareça também como “paraíso” [p. 130] onde ocorre a “ressurreição da flora” [p. 126], já que “a natureza se compraz num jogo de antíteses” [p. 135]. Mas este amor pelos opostos não deve nos desviar da visão essencialmente trágica de todo o livro. O ciclo do sertão vai na verdade da seca à seca, com breve intervalo em buritis, umbuzeiros e juazeiros (juazeiros que parecem  no entanto candelabros portadores de estranhos círios, a iluminar o   já iluminado). O ciclo da terra, espécie de Waste Land perpetuamente renovada, é dominante e imprime sua feição aos próprios homens – se souberam, como os romanos na Tunísia, fazer recuar o deserto, são, no entanto, essencialmente, produtores de novos desertos, através do desmatamento por fogueiras imensas, constantes, acesas há séculos. Como se faz um deserto? (título de um subcapítulo) – do ponto de vista da terra, um deserto se faz também através dos homens, parte involuntária deste mecanismo. No ciclo essencial descrito neste capítulo – a terra seca que evapora ou lança fora a água que recebe –, os vegetais têm um papel intermediário, produtores especializados de mecanismos para a retenção da água, e os homens um papel ambíguo, mas essencialmente favorável à seta entrópica das secas, que leva sempre ao calor e à desertificação.

Na verdade, todo o livro de Euclides é atravessado por um sentido    de entropia, de nadificação, que tem neste capítulo o seu momento mais intenso e que corresponde a uma das mais profundas intuições  do autor – a fatuidade do tempo, dos atos, da história. A terra é     para Euclides o local por excelência desta entropia, em sua unidade monstruosa que tudo reúne e pacifica, mas na morte. Na verdade, mais do que exterminar o que sobre ela se agita, a terra conserva em morte, confundindo o móvel e o imóvel, o vivo e o morto, numa premonição da tática vitoriosa dos jagunços contra os sulistas. A mumificação, que será um tema fundamental ao longo do livro, é introduzida, nestas páginas iniciais, em um dos mais belos trechos de toda a obra: “Higrômetros Singulares” [pp. 105-108]. Ali, um rapaz, preservado da decomposição e da vala-comum, descansa já morto debaixo de uma árvore; o cavalo do alferes Wanderley continua a última carga, aprisionado (de pé!) junto ao barranco, “feito um animal fantástico” [p. 107]. É tão pouco o que a vida pode contra a “evolução regressiva” dos sertões que quase não faz diferença se ainda vive efetivamente ou apenas copia da vida a sua aparência exterior. Além disso, o ciclo da vida, feito de nascimento e decomposição, é interrompido aqui: “Nenhum verme lhe maculara os tecidos” [p. 107]. O sertão, feito uma salina, interrompe o tempo dos tecidos orgânicos e também a própria história, preservando a aberração de uma “raça atrasada” em meio às “raças superiores”. Mas será a força desta aberração – da comunhão fantástica, mumificada, entre um passado geológico e uma raça primitiva – que derrotará os exércitos sulistas, e também a consciência estuporada de Euclides.

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A geologia, neste capítulo, é o contraponto inerte, talvez inconsciente, ao desejo de história que atravessa o livro. Como não sentir a admiração do narrador pela estabilidade portentosa da Terra, pela distância milenar de seus confrontos, transformados em signos estáveis, em fósseis? Aqui, a história nada pode. Pois nos capítulos seguintes este desejo, minuciosa e progressivamente frustrado, será o centro da principal contradição do livro. Como a vontade civilizadora reverte-se em degola e barbárie, como a fácil vitória transforma-se em lenta agonia e a Tróia de taipa rouba aos sulistas a ética de que seriam portadores, a terra, como um arrimo negativo, estará lá para garantir contrapeso e, quem sabe, uma campa e um descanso final, postos desde o início, para as ilusões de Euclides. Além disso, se no plano do conteúdo esta ilusão positivista deixa logo transparecer as suas contradições, será na forma, no fôlego infinito do texto, no fraseado cheio de ecos e de rimas, no aparato inteiro de um escritor desigual mas brilhante como Euclides que este desejo acabará encontrando ambivalência e refúgio. Se o texto tem tantas reentrâncias, tantas câmaras de ecos, tantos quartos de espelhos e labirintos sonoros, é para adiar a sentença que Euclides trouxe já de São Paulo, no terno de linho branco com que subiu Monte Santo. É dentro deste aparato lingüístico hiperbólico que a consciência de Euclides, um pouco à revelia, lança suas perguntas mais profundas e deixa aparecer seu estupor, adiando a condenação que ameaça surgir ao final de cada parágrafo. Assim, numa estranha inversão, o beletrismo e a excessiva dicionarização do texto ganham aqui uma verdade insuspeitada. Pois  é neles, dentro deste estilo quase ilegível, que podem ainda se abrigar e ganhar vida os sertanejos deserdados.

  1. Os sertões – Campanha de Canudos. Prefácio, cronologia, notas e índices de Leopoldo Bernucci. São Paulo: Ateliê Editorial / Imprensa Oficial / Arquivo do Estado, 2002.
  2. Os sertões, cit., Prefácio, p. 18. Ver a este respeito, de Miriam V. Gárate, “Cruzar a linha negra e desfazer a oposição”, in Rinaldo de Fernandes (org.), O clarim e a oração. São Paulo: Geração Editorial, 2002.
  3. Mario Cavalcanti Proença, Estudos literários. Rio de Janeiro: José Olympio / mec,
  4. Capítulo “Os sertões”.
  5. É a descrição precisa de um trabalho do artista pós-minimalista norte-americano Robert Smithson, “Upside-down tree” (1969), realizado em Captiva Island, Flórida. In Robert Smithson: the collected writings, 132. Berkeley: University of California Press, 1996. A comparação entre Smithson e Euclides não é de todo despropositada, já que em ambos a eternidade geológica comprime o presente, visto como trauma (Canudos, no caso brasileiro; Vietnã, no caso americano). Esta inversão entre vegetal e mineral pode ser encontrada também em João Cabral de Melo Neto: “A árvore destila/ A terra, gota a gota;/ A terra completa/ Cai, fruto!”, in Psicologia da composição. Barcelona: O livro inconsútil, 1947.