À espera de um sol interno (Hélio Oiticica)/1995

 Para Alberto Tassinari 

 À espera de um sol interno (Hélio Oiticica)

1.

Retirado da adversidade da qual dizia viver, o trabalho de Hélio Oiticica sofre hoje a dura prova da institucionalização e da unanimidade. A questão, penosa para qualquer obra autêntica, parece ainda mais contundente num trabalho como o seu. Não apenas por ter-se mantido, enquanto pôde, arredio a toda feição que lhe fosse atribuída, mas porque sua dinâmica formal mais íntima, a da inclusão do que lhe é diverso num interior sempre dilatável, precisa de resistência, de matéria exterior com a qual possa se medir. A adversidade e o subterrâneo ofereciam-lhe ainda, mesmo que difusos, uma borda, uma fronteira. Apagado este limite, seu trabalho corre o risco de tornar-se fonte de uma normatividade paradoxal. Daí que seja imprescindível restituir a ele um ponto de vista exterior, que percorra seu labirinto sem mimetizá-lo. Por ser dotado de um sentido extremo de ambição e urgência, que chamou a si a tarefa de elevar a arte brasileira a um patamar definitivo de autonomia e originalidade, talvez seja possível, desde já, olhar para ele com um distanciamento que obras menos intensas não permitem.

Dotado de seus próprios parâmetros críticos (em que pese a influência de Mário Pedrosa e, em especial, de Ferreira Gullar), também neste sentido seu trabalho respira uma ambição e um fôlego inéditos em nosso meio. Escritos ao longo de toda a vida, seus textos constituíram um dos mais poderosos mecanismos de estruturação do trabalho – mimetizam-no e chegam às vezes, em especial a partir dos anos 70, a colocar-se em seu lugar. Parecem, ao mesmo tempo, tratar de obras já prontas e ser parte integrante delas, como uma poética que estivesse inteira mas que se ampliasse a cada descoberta, partilhando assim uma ambiguidade entre dentro e fora própria de tudo o que fez. O curioso é que entre tantos saltos e surpresas jamais um único elemento discrepe, ameaçando a teoria. O trabalho parece condenado a acertar – daí o tom aflito de seus textos, que ao mesmo tempo anunciam e encarnam a coerência do projeto, carregando, como uma espécie de fatalidade, a consciência de que a obra está se cumprindo. Apesar de muito diversos, há alguma semelhança aqui com as Cartas de Van Gogh a seu irmão, que também se transformam numa espécie de duplo da obra (em quadros que chegam a ser descritos com a especificação minuciosa das cores), testemunhas a um só tempo eufóricas e aflitas desse encontro constante, quase inevitável, do trabalho com aquilo que procura. Os últimos textos de h.o., produzidos em grande parte em Nova York na década de 70, entre intuições brilhantes e trocadilhos infames, deixam à mostra o que há de ambíguo, às vezes patético, nessa identidade reiterada ao limite. Condenados a si mesmos, parecem (como o último Glauber) finalmente exaustos.

De toda forma, estes textos criam um programa, um todo jamais falseado por suas partes. É graças a eles que o circuito do trabalho se faz presente em cada etapa, recuperando elementos das etapas anteriores e apontando para as próximas. O perímetro das obras plásticas acaba sendo dado pelo poder de ampliação das questões de que os textos são portadores, num círculo virtuoso que retorna a elas, energizando-as. Este moto-contínuo parece um dos segredos de h.o., e mais uma das interiorizações de seu trabalho. Por maior que seja o salto criativo, a diferença entre um conjunto de obras e outro, o método subjacente nunca é contradito, numa corrente subterrânea que garante, de um lado, a continuidade entre as obras (como veremos, traço fundamental de toda a sua poética) e, de outro, a tradição construtiva de que se quer herdeiro. A estrutura geral do trabalho é fundamental, no seu caso como no de Lygia Clark, para garantir a genealogia construtiva, afastando, ou hierarquizando, os impulsos dadá-surrealistas que circulam cada vez mais fortemente. De toda forma, é ancorado desde o início nesta estrutura binária, obra e texto, que seu trabalho vai se lançar. 

E vai se lançar, creio, a partir de uma intuição básica, que permanecerá até o fim: a de realizar efetivamente, no mundo real, o que era promessa virtual nas vanguardas construtivas – como telas de Mondrian ou de Málevich transformadas em coisas, feitas agora de madeira pintada ou de outro material qualquer, livres da idealidade do espaço da tela. Há muito de país novo neste assalto ao real, nesta passagem para o outro lado do espelho, muito de Brasília na solidão do planalto. É o aspecto de modelo, de idealidade que tem toda obra de arte que estaria sendo posto de lado. No entanto, o que se procura aqui não é uma aplicação destes modelos, como no design, mas a coincidência alucinada entre modelo e realidade, entre aquilo que estava prometido e sublimado numa tela de Mondrian e o mundo efetivo, encarnando assim a idealidade estética no fluxo da vida – no fundo, é a própria vida, a vida inteira, que se quer transformar em modelo. Esta operação impossível, cujo passivo se faz presente a cada momento, vai reger todas as obras de h.o., que acabarão paradoxalmente tendo de duplicar a vida em interiores cada vez mais poderosos e, por isso mesmo, cada vez mais preservados do contágio do mundo. Nas palavras de Rodrigo Naves, “a tentativa de promover experiências que fossem além de uma relação contemplativa entre espectador e obra termina por desembocar numa exploração da intimidade do mundo ou do corpo”.1 

Não se deve estranhar, portanto, se numa descrição genérica o trabalho de h.o. pode ser tomado como a entrada progressiva do corpo na obra. Com efeito, desde os vãos dos “Metaesquemas” e das frestas dos “Relevos espaciais”, que o olho invade, até os “Bólides” que a mão movimenta, os “Parangolés” que o corpo veste, os “Penetráveis” que percorremos, as “Praças” em que passeamos ou os “Ninhos” em que vivemos, há uma minuciosa e paulatina entrada do corpo no invólucro da obra. Este movimento para dentro da obra oferece na verdade um contraponto à objetivação do espaço da pintura. Como veremos, o trabalho de h.o. vai atuar em ambos os lados: sempre que criar uma saliência externa vai compensar com uma dobra interna, sempre que despertar para o mundo vai adormecer dentro dele. 

Talvez os “Relevos espaciais” (1959) sejam o primeiro momento em que esta duplicidade se dá. Trata-se de um dos mais belos trabalhos de h.o., em que a virtualidade da pintura aparece ainda perfeitamente equilibrada com a encarnação objetual dos planos de compensado. Com as “Invenções” (1958), pequenos planos monocromáticos levemente separados da parede, dera-se o primeiro salto para o espaço, em módulos coloridos que os “Núcleos” (1960-63) irão realizar plenamente. Os “Bilaterais” (1958-59) trazem a cruz de Málevich para o espaço, mas sem nenhuma tensão interna, já que ambos os lados da figura coincidem e a espessura entre eles, dada pela madeira pintada, não ameaça sua dupla frontalidade. Mas a aposta se potencializa com os “Relevos espaciais”. O que se quer, agora, é multiplicar os planos da pintura, desdobrá-los no espaço real, aproveitar pela primeira vez a situação tridimensional da obra, desfolhando-a. Este projeto de afirmação do plano em sua potencialidade espacial leva, no entanto, ao seu contrário: o que ve-mos surgir na espessura entre as duas faces, agora assimétricas, é um interior enigmático, uma aresta que parece querer afirmar um vácuo, um não-lugar entre as duas faces frontais do trabalho. É desta fenda, cavada a partir da espessura do plano, que vai sair todo o trabalho de Hélio Oiticica – e grande parte da arte contemporânea brasileira. Na verdade, este pequeno paradoxo é seu caroço poético: materializar a obra no mundo acaba por criar um refúgio dentro dele.

Com os “Núcleos” (1960-63) pela primeira vez entramos dentro da obra. Estruturados por fios invisíveis, os planos suspensos sucedem-se, quase sempre na vertical, tendo a cor como garantia fluida de continuidade. Uma característica central de todo o trabalho de h.o. aparece aqui: a ausência de pontos de apoio, de elementos de construção explicitados – em outra palavras, o elogio à leveza. Toda a sua obra parece marcada por esta fuga ao peso, como se sua inserção problemática no mundo devesse começar por excluir a lei da gravidade universal. O movimento ascensional de muitas de suas obras posteriores virá confirmar esta característica. Por enquanto, os planos sucessivos, suspensos no ar, livres da tensão do próprio peso, devem unificar-se pela cor, que ocupa, nos primeiros trabalhos de h.o., um papel considerável. É importante refletir um pouco sobre isto.

Em primeiro lugar, h.o. quase sempre utiliza tons e matizes, e não cores puras. Há nesta escolha, desde logo, um amor pelo intermediário, pelo que é provisório, que serve de ponto de partida, intensificando-se até o absoluto. Este assalto à idealidade pelo que é passageiro, às vezes banal – e as asperezas das madeiras de compensado são testemunhas disto –, é decisivo em seu trabalho. O amor aos matizes e tons, à gradação de cores intermediárias, certamente provém daí. Além disso, se utilizasse cores puras, como Mondrian, seria mais difícil alcançar a modulação necessária para fazê-las durar. Haveria, sempre, o retorno aguardado à cor dominante, com a consequente hierarquização entre as partes do trabalho, algumas centrais, outras periféricas. Tons e matizes deslizam com muito mais fluidez uns para os outros, unificando as partes sem isolar momentos nem criar a expectativa de um retorno. Isto exclui talvez, no entanto, a natureza mais profunda da cor, que é a de pôr-se enquanto relação. Basta olhar os recortes do final da vida de Matisse para perceber que não é a intensidade, a voltagem interna de uma cor que a qualifica, mas sua tensão com as demais. Para isto, no entanto, é preciso que o campo de cor tenha um dentro e um fora, um contorno. É esta tensão entre a característica expansiva da cor e sua contenção dentro de uma forma que os recortes de Matisse, ao mesmo tempo linha e cor, expansão e contenção, parecem ter harmonizado (porque tudo ali é harmonia). Nestes trabalhos de h.o. o que se procura, ao contrário, é o apagamento dos contornos pela intensificação da cor e sua impregnação no espectador. Há uma passividade nesta expansão controlada e sem sobressaltos, uma monotonia nesta passagem das imperfeições do material ou da característica intermediária da cor à sua duração, cercando o espectador por todos os lados, que vão oferecer um solo comum aos próximos trabalhos. Nasce com os “Núcleos” este sono sem obstáculos, tão intenso quanto aconchegante, que elide o mundo e protege o sujeito, característico de todo o trabalho de Oiticica. 

Não é à toa que a idéia de labirinto aparece pela primeira vez aqui (através do “Projeto cães de caça”, de 1961, uma enorme praça-labirinto que nunca foi construída), para não sair mais do imaginário da obra. O labirinto oferece uma forma absolutamente adequada à vocação profunda do trabalho de h.o. e faz parte de sua extraordinária lucidez perceber isto tão cedo. Pois trata-se, afinal, de um interior excessivamente reiterado, que sempre ergue uma dobra a mais, sempre cai para dentro de si, adiando assim indefinidamente sua fronteira exterior. É próprio do labirinto essa interioridade que se volta contra aquele que está nela, numa identidade repetitiva e afinal claustrofóbica que o vento da vida comum já não alcança. É para dentro desta arquitetura paradoxal que o trabalho de h.o., com aquela ênfase peculiar, vai se lançar a partir de agora. Será preciso então, e este passa a ser o foco do trabalho, fugir a seus aspectos claustrofóbicos, à aspiração inevitável de quem está no labirinto pelo exterior. Para conseguir isto, para fazer o labirinto durar, vai encher primeiro as suas dobras com pedaços do mundo (“Bólides”) e exponenciar depois ao máximo o próprio sujeito que o percorre (“Parangolés”), tarefas que os primeiros trabalhos, ainda demasiado presos à memória da pintura, não poderiam executar.

2.

Em “Os dois reis e os dois labirintos”, uma de suas narrativas mais conhecidas, Jorge Luis Borges descreve o deserto como o maior dos labirintos, aquele de onde não se pode definitivamente escapar. Trata-se, de fato, do labirinto da pura exterioridade – as dunas são iguais, o céu é sempre o mesmo, o sol irradia o seu calor constante. Se a indiferenciação do labirinto vem de uma interiorização sem fim, da excessiva compartimentação do espaço, a monotonia do deserto deve-se, ao contrário, à ausência de qualquer individuação, à impossibilidade de encontrar marcos, unidades que se contraponham ao todo. Na verdade, o deserto está inteiro em cada um de seus pedaços e é por isso que nos per-demos nele – no labirinto estamos sempre na parte, no deserto estamos sempre no todo. É curioso que a arte norte-americana contemporânea a h.o. tenha elegido o deserto, o labirinto extremo da narrativa de Borges, como espaço operativo, traçando uma linha no seu solo seco, cavando um duplo negativo no canyon ou construindo uma espiral na superfície de um lago salgado. Esta situação de pura exterioridade conclui um movimento que se iniciou, talvez, paradoxalmente, com a Canção de mim mesmo de Whitman, irradiando dali para a arquitetura de Frank Lloyd Wright, firmando-se na pintura de Pollock, passando pelo primeiro Minimalismo e, a seu modo, pela Pop e realizando-se plenamente nos trabalhos de artistas como Robert Smithson, Michael Heizer ou Walter de Maria. 

Vindo deste labirinto do fora, antagônico ao labirinto interior de Oiticica, o trabalho de Bruce Nauman mantém, no entanto, muitos pontos em comum com o dele. No final da década de 1960 e início da de 1970, criou corredores claustrofóbicos de luz verde, ou com um monitor de vídeo em sua extremidade, do qual parecemos nos afastar ao nos aproximarmos, já que uma câmera colocada no ponto onde entramos está nos filmando. São, a seu modo, penetráveis, e têm por horizonte, como quase toda a obra de Nauman, o corpo, tomado como um centro de estímulo e de respostas. Apesar destas afinidades, no entanto, ao contrário do trabalho de Oiticica, Nauman trata o eu como um autômato, um rato de Pavlov paralisado por estímulos contraditórios. Na verdade, grande parte de sua originalidade vem de aplicar a seriação característica do primeiro Minimalismo onde menos se esperava: nos mecanismos da subjetividade. Procura fundir assim a exterioridade absoluta da série à interioridade do corpo e do eu, transpirando por isso uma violência e uma crueldade tanto mais intensas quanto naturalizadas. Descontínuo, seccionado em mecanismos obtusos (“Meu sobrenome exagerado quatorze vezes verticalmente”; “Coleção de vários materiais flexíveis separados por camadas de graxa com buracos do tamanho do meu pulso e cintura”; “Medidas em neon do lado esquerdo do meu corpo tomadas à distância de 10 polegadas cada”), o eu de Nauman se coisifica em neons, vídeos e bichos de parquinho com tanta naturalidade que mal nos damos conta. Se vamos adormecer no interior dos trabalhos de h.o. para de lá descobrir um mundo novo, em Nauman entramos acordados num pesadelo onde o mundo já está, aguardando por nós em seu circuito de maldades sutis.

3.

Num movimento algo paradoxal, é justamente esta alteridade do mun-do, presente desde sempre num trabalho como o de Bruce Nauman, que o trabalho de h.o. vai buscar em sua nova etapa: a dos “Bólides” (a partir de 1963). Com eles, a cor, encarregada desde o início de preencher e conduzir o espectador, vai ganhar a companhia de objetos seqüestrados diretamente ao cotidiano. É importante refletir um pouco sobre a natureza específica dessa operação. Antes de mais nada, todo um arsenal de formas vai entrar porta adentro para receber essa nova população. É a memória da pintura, a presença literal da profundidade pictórica no espaço real que está sendo afinal posta de lado. Por estarem na passagem entre a primeira fase (que tomam os planos da pintura por célula-base) e os demais trabalhos, os “Bólides” são obras híbridas, em que a linguagem planar se faz ainda presente, mas convivendo agora com um princípio espiralante que não dera sinal até então. Parecem cadinhos redondos onde os planos dos “Relevos espaciais” vêm se fundir – talvez por isto o significado da palavra bólide seja pedra incan-descente – e, às vezes, lançar-se novamente num movimento ascensional que os “Parangolés” virão confirmar. Organizam-se, em geral, em dois momentos: na parte inferior, planos móveis, como gavetas, entram dentro uns dos outros; na superior, cubas com pigmentos fundam e dissolvem estas estruturas manipuláveis. Como todas as séries de Oiticica, os “Bólides” vão multiplicar-se, propondo soluções muito diversas destas, mas este esquema geral bipartido de fato caracteriza grande parte deles. 

O mais importante, no entanto, está na inclusão de objetos ou, como o próprio Oiticica escreveu, “(n)o que eu chamo a fundação do objeto. Para um trabalho onde tudo retorna a si mesmo, é quase paradoxal estender a mão até o outro lado do espelho e trazer objetos para dentro do labirinto. Como apaziguar esta diferença? Como povoar o que era o campo expansivo e contínuo da cor com coisas reconhecíveis, carregadas de memória, de nome próprio, de texturas, de singularidade? Tornar isto possível significa estender infinitamente a borda do “Penetrável”, fazer com que coincida com o mundo e que esteja, potencialmente, em toda parte. As possibilidades inauguradas aqui levam aquela coincidência alucinada entre modelo e realidade, de que falei no início, ao seu extremo, tornando o ponto de partida algo tímido, pois já não será mais preciso reconstruir no espaço, com madeira, prego e tinta, as promessas de uma tela de Mondrian – trata-se, agora, de uma operação mais ágil e imedia-ta: a apropriação do real, sua súbita e arbitrária inclusão no sistema. Não é a idealidade da arte que será recuperada através de sua construção efetiva em algum apartamento do Rio de Janeiro – é o projeto de Oiticica que já se sente suficientemente poderoso para, através de seu selo, de seu decreto, seqüestrar os objetos do ramerrão cinzento da mercadoria e da vida banal para lançá-los no céu da arte.

É claro que esta operação é extremamente problemática e bastante paradoxal. Para compreendê-la, talvez seja necessário retomar o traça-do do projeto desde o início. Procurando realizar-se do outro lado da tela, o trabalho de Hélio Oiticica inaugura paradoxalmente, desde os “Relevos espaciais”, frestas sucessivas que levam ao labirinto dos “Núcleos”. Ameaçado no entanto pela passividade e pela monotonia, buscando energia e riqueza, os “Bólides” vêm para atacar o real, procurando, de um lado, manter o adiamento progressivo do mundo numa interiorização constante, mas fazendo-o agora através da inclusão paradoxal de seus elementos e conteúdos. Isto acaba por ameaçar a auto-suficiência e continuidade internas da obra. A solução, nas palavras de Oiticica, seria fundar os objetos, fazendo tábula rasa de sua função, valor, de aspectos de sua memória etc. Estamos, portanto, diante de uma dessas exigências paradoxais de que o trabalho de h.o. se nutre: neste caso, alargar o horizonte, digamos, semântico do trabalho sem perder sua identidade original, recorrente e contínua. Seria preciso, assim, descobrir algo como se sempre soubéssemos que estava lá; abrir-se para o mundo como se tivéssemos o mesmo tamanho que ele; encontrar nas coisas, nos estímulos exteriores, apenas o que já nos é familiar e íntimo. 

O mais curioso é que esta impossibilidade objetiva de fundar o outro vai criar apenas mais uma dobra no programa-labirinto, que longe de ser desmentido sai dessa experiência ainda mais fortalecido. É da adversidade que efetivamente ele vive, já que se transformou no campo alucinado em que sujeito e objeto mutuamente se fundam e misturam. Não há mais como falseá-lo, como se estivesse condenado a confirmar-se sempre. “Se bem que eu faça uso de objetos pré-fabricados nas obras (p. explo, cubas de vidro) não procuro a poética transposta destes objetos como fins para essa mesma transposição, mas os uso como elementos que só interessam como um todo, que é a obra total. Seria o que chamo a ‘fundação do objeto’ [...] Não é o ‘objeto’ cuba e o ‘objeto’ pigmento-cor, mas a obra que já não é o objeto no que possuía de conhecido, mas uma relação que torna o que era conhecido um novo conhecimento [...]”. A mistura de brilho intelectual com wishful thinking deste trecho vem da ambigüidade dos próprios “Bólides”. De um lado, elevam lanternas mágicas, vidros de perfume, formas de forno, caixas d’água à condição fundante da obra tomada como um todo. De outro, estas coisas permanecem paradas à nossa frente, a exigir adesão ao circuito da obra para que ganhem ambiguidade. 

É curioso como os elementos utilizados nos “Bólides” pertencem basi-camente a duas famílias: a de materiais de construção (caixas d’água, tijolos, caixas de misturar cimento, telhas) e a de coisas íntimas já usadas ou desgastadas pelo tempo (vidros de perfume, lanternas mágicas, bolas de criança). Num caso, objetos que formarão algo; no outro, objetos que já terminaram seu ciclo; objetos que serão ou objetos que foram – jamais objetos que são. Isto facilita sua transitividade, agredindo menos a continuidade da obra à qual buscam se fundir. Todo o esforço de h.o. será manter a continuidade essencial ao seu sistema – daí seu apreço pelo vidro, pelo tule ou outros materiais transparentes –, numa luta contra a colagem (a expressão é de Hélio Oiticica) que o diferencia do Merz de Schwitters e de todos os herdeiros da colagem cubista. 

Também o Surrealismo é marcado pela descoberta de uma interioridade – nas caixas de J. Cornell, no primeiro Giacometti, nas gavetas da Vênus de Dali, em Arp, nos filmes surrealistas em geral, há sempre, como lembra Rosalind Krauss, um espaço interior cheio de surpresa e devaneio. Estes interiores alucinados, no entanto, são de alguma forma contíguos aos lugares comuns, emergindo deles. No fundo, para que o inconsciente desreprima é preciso sempre que o mundo da ordem e do ego reprimido se façam presentes, numa estrutura polar que tende à paralisia e à codificação. A xícara peluda de Meret Oppenheim é ainda a mesma xícara que utilizamos todas as manhãs. Esta vizinhança, no entanto, é tudo o que o trabalho de h.o. quer evitar, já que busca a pura duração de sua arquitetura autônoma e não um substrato comum com a vida, a ser tensionado pela obra. 

O mesmo se aplica à questão da coincidência, ou acaso objetivo, este instante em que a vida se abre para um sentido excessivo, buscado cotidianamente pelos surrealistas. Aí também o tédio do dia-a-dia deve criar um pano de fundo de onde a coincidência possa emergir. É nos atos banais, desvinculados agora de sua funcionalidade, que os surrealistas vão buscá-la, como uma porta estreita que rasgue o real até a maravilha e o encantamento. Quando h.o. encontra um pedaço de asfalto com a forma de Manhattan ou quando vê um quadro de Van Gogh num bilhar de boteco, é a seu próprio sistema que a coincidência remete, confirmando seu poder de duplicar-se, de seqüestrar a realidade banal, trazendo-a para dentro da arquitetura da obra. O boteco continua o mesmo, nada nele se revela inusitado ou surpreendente. É a sua elevação por decreto, preservado ainda em sua aparência desencantada, que verdadeiramente surpreende. A realidade não se abre para nada, apenas coincide consigo mesma, já que desde a gradação de matizes e tons, desde as asperezas do compensado o trabalho de h.o. vai sempre enxergar no intermediário e no provisório, agora tornados pedaço do mundo, asfalto, boteco, uma fatia do absoluto. De novo, o mesmo paradoxo, em que se misturam atividade e passividade: elevar o boteco ou o pedaço de asfalto até seu duplo ideal – a obra que está sendo feita – significa, ao mesmo tempo, banhá-los nessa idealidade e deixá-los exatamente como estão. 

4.

O sistema dos “Bólides” vai se desenvolver ainda mais a partir da criação do sistema “Parangolé”, seu oposto complementar. Se nos primeiros é a impossível fundação do mundo no interior da obra o que se procura, no segundo é a exponenciação do sujeito até sua fusão completa com a obra. Para dar lugar a este sujeito extático, o princípio em espiral, ainda em luta com o princípio planar nos “Bólides”, leva a melhor, desfazendo a hibridez de grande parte da série anterior – o cone da parte de cima desprega-se das “gavetas” presentes em tantos “Bólides”, abandonando de vez o neoconstrutivismo das primeiras obras. A rigidez dos planos coloridos de madeira não é suficientemente veloz para suportar a fusão em movimento entre o espectador e a obra, que passa a organizar-se a partir de uma forma-tufão, ascensional, que irradia desde um centro (talvez, como nos furacões, paradoxalmente calmo) onde está abrigado o corpo. Ele é a fonte e o motor da explosão formal, o núcleo de onde os antigos planos de cor, transformados em texturas e materiais diversos, volatilizam e expandem. A obra, aqui, deve de fato ser mole – é esta característica sua que garante a reversão contínua entre as faces do plano, para que o corpo possa embrulhar-se e desembrulhar-se neles e a partir deles. Na verdade, vistos de fora, imobilizados num cabide, estes planos parecem incompletos, genéricos e desvitalizados, o que exige de quem veste a capa uma atividade complementar proporcional que os movimente e anime. Creio que esta atividade, no entanto, não será capaz de preencher a virtualidade sem fim, ou indeterminação profunda, destes planos moles e dobráveis.

A obra de Lygia Clark oferece uma boa introdução a estas dificuldades. Se os “Bichos” não parecem encontrar jamais uma posição definitiva, um repouso que os livre de um rearranjo sem fim, é porque cada uma de suas posições é em boa medida idêntica às demais. A obra, assim, é de fato ativa, mas, ao mesmo tempo, indiferente ao que a atividade do espectador produziu. Como todas as posições de um “Bicho” no limite se equivalem, o espectador acaba por passar rapidamente para o plano do divertimento. O aspecto lúdico do trabalho de Lygia Clark resulta deste mecanismo de equivalência entre as partes, desta constante de energia em cada combinação de planos que pacifica, antes de precisar harmonizá-la, qualquer tensão formal.

Estas mesmas características aparecem em boa medida tanto nos “Bólides” quanto nos “Parangolés” de h.o.: a indeterminação das unidades elementares destas obras exige uma atividade sem fim, circular e recorrente, por parte do espectador – sua ação fica de alguma forma aprisionada nessa indeterminação, que não está autorizado a romper. É por isto que nos “Parangolés” o foco vai pular da obra para o espectador que a veste – e neste salto, como veremos, acabará por criar um resíduo entrópico e incomunicável. Na verdade, por não ser passível de determinação a obra exige do espectador uma energia também ela indeterminada. Deve vesti-la permanecendo, ao mesmo tempo, abrigado numa plenitude extática cujo centro se encontra além da obra. O dançarino e sua capa mantêm-se, portanto, de algum modo separados, não podendo fundir-se verdadeiramente para não estancar o devir indeterminado da duração da obra. Entram, digamos assim, em fase, estimulando-se reciprocamente, mas de algum modo alheios a tal estímulo. 

Mas este alheamento não deixa de ser uma vantagem do trabalho de h.o. sobre o de Lygia Clark – daí que o caráter lúdico esteja muito menos presente nele. Afinal, tanto nos “Bólides” quanto nos “Paran-golés” a unidade espectador-obra aparece cindida desde o início, ele-vando a voltagem necessária ao preenchimento dessa fissura. Se algo, no entanto, permanece intocável na plenitude do dançarino é porque há no transe para h.o. um além ou aquém do mundo, que se exerce enquanto passividade. A indeterminação formal da capa e a auto-suficiência do transe exigem esta passividade. Assim, de um lado, os dois pólos permanecem de certo modo intocados, mas, de outro, terão de buscar-se incessantemente. Isto acaba por dar ao “Parangolé” uma continuidade de ordem musical. A sucessão entre os aspectos não se deixa estancar, numa seqüência que se impõe à individuação “fotográfica” de cada momento. É próprio da idéia da obra não deixar-se fixar – sua verdade mais profunda é escapar ao cabide e seguir fluindo. Aquilo que nos “Bichos” aparece como uma sucessão inesgotável e de algum modo frustrada de posições ou de aspectos insuficientes vai resolver-se nos “Parangolés” enquanto duração. A união entre o corpo em transe e a capa, por ser problemática desde o início, precisará atualizar-se na dança, num movimento sempre renovado, como vasos comunicantes por onde escorresse o líquido da expressão. Vista desde dentro, a partir do dançarino, a obra na verdade pula do espaço onde se dança para o tempo de sua duração; mas por isto, ao contemplá-la de fora, perdemos já o essencial. 

A obra plástica aparece, aqui, como resíduo de alguma coisa que está se dando em outro plano. O hiato entre interior e exterior, entre olhar a obra e vivenciá-la desde dentro, chega então ao seu limite. Pois algo essencial permanece incomunicável – o ponto de vista do dançarino. Que é que ele viu afinal? Que é que sentiu? O fato de que nós mesmos possamos vestir a capa não elimina a afasia da situação. Na verdade, é bastante curiosa a ausência de elementos ritualísticos nestes trabalhos de h.o., que poderiam talvez criar uma mediação entre o espectador e o ator. Faz parte da radicalidade paradoxal de seu trabalho manter sempre no horizonte a autonomia e o silêncio da obra moderna. A plenitude extática fecha-se em si mesma sem veicular conteúdos ou doutrinas exteriores ao trabalho – ao contrário, por exemplo, da obra de Joseph Beuys. O mundo parece estar sempre começando, as relações vêm do nada e voltam para ele, tendendo ao adormecimento e ao torpor. O êxtase propiciado pelo “Parangolé” se esgota em sua própria duração, como um fruto consumido por inteiro e sem resíduo, e sua experiência, do ponto de vista de quem vestiu a capa, não é propriamente comunicável. Na verdade, só pode comunicar-se pelo contágio ou pela contemplação desde o exterior, necessariamente inadequada.

Segundo Mircea Eliade,2 o xamã é um “especialista em um transe durante o qual se acredita que sua alma deixa o corpo para realizar ascensões celestes ou descenções infernais”. O que o distingue de outros curandeiros é esta vocação extática, que ele domina, podendo visitar assim o reino celeste ou infernal (há ambas as modalidades de xamãs). Através de sua indumentária e de seu tambor, o xamã tem acesso ao êxtase, numa analogia intensa com os “Parangolés”. “A indumentária representa, em si mesma, um microcosmo religioso qualitativamente diferente do espaço profano circundante. De um lado, constitui um sistema simbólico quase completo e, de outro, está impregnada, pela consagração, de forças espirituais múltiplas e, principalmente, ‘espíritos’.” O xamã domina o êxtase, podendo produzi-lo sempre que houver necessidade, como uma técnica pessoal e secreta. Apesar das semelhanças com os “Parangolés”, esta idéia do êxtase enquanto técnica ou sabedoria é totalmente estranha a h.o. – aqui, o êxtase é pessoal e intransferível, não podendo ser propriamente comunicado. A reiterada conversão ao ato, ao agora, própria dos “Parangolés”, é que dificulta sua expressão. Cada indivíduo, um a um, terá de prová-lo sozinho. A felicidade do bailarino morre consigo e o que nos resta é iniciar-nos, vestindo a mesma capa e dançando nossos próprios passos.3

5.

É esta estrutura de alguma forma solipsista que vai afastar o trabalho de Hélio Oiticica do desenvolvimento de uma vocação política mais explícita. Pois a cisão sempre recalcada entre interior e exterior, que tem nos “Parangolés” o seu momento extremo, acaba por colocar em suspenso a recepção da obra, problematizando-a até o limite da incomunicabilidade. Nisto, Hélio Oiticica mais uma vez diferencia-se fortemente de Joseph Beuys, um autor com o qual guarda, no entanto, semelhanças profundas (em especial no que diz respeito à fusão idealizada entre obra e vida). Beuys sempre se deixou tensionar pelos discursos, pelas Ações, pelas discussões universitárias, pelos partidos políticos, por um circuito de inserção da obra através do qual a generalidade “Todo homem é um artista”, que Oiticica assinaria embaixo, ia ganhando concretude – o hermetismo intenso de seu trabalho, sua extemporaneidade, não teria a força que teve se não fosse tensionada pelo aqui e pelo agora do pós-guerra alemão. Tudo ali parece organizar-se a partir de uma temporalidade estranha, um aspecto milenar, uma inadequação ao presente. É como se a barbárie e a violência extrema da guerra de que participou retornassem atemporalizadas, guardadas talvez numa pré-história onde fosse suportável olhá-las. Beuys cria uma desmesura no tempo, um hiato na história para tratar de uma cicatriz profunda, o trauma do passado recente. Seu assunto, portanto, sempre foi, ainda que de forma paradoxal, essencialmente político. Em vez de afirmar ou criticar o presente, transforma-o num objeto primal, espécie de pedra bruta e antiga que no entanto está acontecendo agora, já que em seu trabalho a terra e o telefone são contemporâneos e intercambiáveis. A arte, para Beuys, é esta possibilidade de iniciar a história novamente, como se fosse uma criança grisalha4 – quer inaugurá-la, mas com a matéria do tempo já transcorrido. Daí o caráter ampliado que a arte tem para ele, como se estivesse em toda a parte, pronta para nascer, mas ao mesmo tempo didático, passível de educação, de veicular conteúdos já vividos. A interiorização de Hélio Oiticica, ao contrário, parece uma resposta simétrica a uma situação inversa, de completa indiferença na recepção. O aspecto mutuamente indeterminado que há entre a capa e o dançarino é expressão desta indiferença e vai estar presente na relação dos seus próximos trabalhos (“Praças”, “Penetráveis”) com o entorno físico e cultural. O dia está sempre começando para quem vestir a capa e dançar – não há nenhum empecilho vindo da história, nenhum pesadelo da consciência que a obra não possa fundar em termos próprios. Não é a toa que, em seu momento explicitamente político, o excepcional “Homenagem a Cara de Cavalo”, o sentimento dominante seja a comiseração, ao mesmo tempo adesão e distância, pelo marginal assassinado que “aqui está/ e ficará” (a frase está impressa no próprio trabalho). É a imutabilidade daquela morte que está sendo chorada e o “Bólide” oferece na verdade um oratório laico onde esta morte será lembrada. Para Beuys, ao contrário, é preciso fundir novamente aquilo que está e ficará, a história, como se fosse um metal já usado, transformando, assim, o tempo transcorrido em matéria bruta, pronta para novas configurações. Para h.o. é justamente a história que está posta de lado – o único tempo presente em seu trabalho é o da duração da obra, que cria um relógio próprio no interior do tempo universal, coincidente com o tempo cardíaco do espectador. Por isto o seu êxtase não leva ao céu nem ao inferno, mas ao descanso, à plenitude da distância, do torpor e da preguiça.

6.

É este princípio de auto-suficiência e passividade, inaugurado pelo pensamento de cor próprio dos “Núcleos” (a expansão tonal sem contraste), desenvolvido depois na fundação dos objetos característica dos “Bólides” e explicitado no transe solipsista dos “Parangolés”, que será levado ao limite nos “Ninhos” e nas idéias do “Crelazer”, cujos principais capítulos são o “Éden”, a “Cama-Bólide” e o “Barracão”. Pois entramos agora definitivamente dentro da obra, estamos imersos nela. Não é preciso mais que animemos a indeterminação de seus planos moles, feitos de tecidos, com a dança de nossos corpos. O êxtase foi ele próprio interiorizado, transformando-se em torpor, em repouso pleno. A obra deve então suprir tudo o que desperta em nós, tendo seus estímulos aquietados e seus rastros rapidamente apagados. O foco do trabalho é agora um corpo que descansa em redes e camas, ou que recebe (nas “Praças” e “Penetráveis”) estímulos sucessivos para seus cinco sentidos: pés que pisam a água, olhos que se voltam para o véu laranja, narina que aspira o perfume etc. Os “Ninhos” (1970-74) oferecem um bom exemplo deste solipsismo cheio onde o mundo entra apenas para nos deixar em paz. Trata-se de pequenas células de sobrevivência em que nada falta: frases prediletas, livros, fitas, filmes, lápis, gravador, cocaína. Na verdade, a “Whitechapel Experience”, chamada “Éden”, reúne este conjunto novo de trabalhos com suas tendas, camas, ninhos e penetráveis que se oferecem ao espectador desde o “útero do espaço aberto construído” num “campus experimental, uma espécie de taba, onde todas as experiências humanas são permitidas”. Como se vê, é a totalidade da vida que está potencialmente guardada neste Éden, dispensada agora de qualquer necessidade de exteriorização. Já não é preciso fundar os objetos para trazê-los labirinto adentro (“Bólides”), nem fundir-nos a ele em carnaval e movimento (“Parangolés”). O mundo nos aguarda em nosso próprio repouso, basta prestar atenção, balançar na rede, sentir a areia nos pés, brincar com “materiais brutos e crus para ‘fazer coisas’ que o participador será capaz de realizar”. As sensações mais imediatas passam a conduzir-nos para o absoluto, num mantra mudo que já trazíamos sem saber dentro de nós: “não há ‘proposição’ aqui – estar-se nu diante do fora-dentro, do vazio, é estar-se no estado de ‘fundar’ o que não existe ainda, de se auto-fundar” (todas as citações são de Oiticica). Tudo se passa como se depois do esforço objetivo dos “Bólides” e da exponenciação subjetiva dos “Parangolés” o sistema repousasse em si mesmo, saciado. Coerente com seu princípio de fusão alucinada com o real, terminou de fato por incluí-lo inteiro. 

7.

Na verdade, as últimas obras de Oiticica gravitam em torno ao esquecimento de uma pergunta que já se insinuava pelo menos desde os “Núcleos”: qual afinal a relação física da obra com o mundo que a envolve? Onde penetra o Penetrável? A questão parece incomodar Oiticica pelo menos desde 1962: “Um escultor, p. explo, tende a isolar sua obra num socle [...] pelo próprio sentido de espaço de sua obra; há aí a necessidade de isolá-la. No Penetrável, o espaço ambiental o envolve e penetra a um só tempo. Mas fora daí onde situar o Penetrável? Talvez nasça daí a necessidade de criar o que chamo de ‘projetos’. Não que sejam socles dos Penetráveis (que idéia superficial seria), mas que “guardem” essas obras, criem como que prelúdios à sua compreensão.” 

Provavelmente, o projeto a que o texto se refere, dada a proximidade cronológica, é o Projeto cães de caça, de 1961, que incluía já diversos “Penetráveis”. A questão parece, assim, adiada pela ampliação do perímetro do labirinto. Mas onde o próprio projeto se situa? De que é feita a sua borda? Como convive com o que lhe é contíguo? “Que sentido teria atirar um Penetrável num lugar qualquer, mesmo numa praça pública, sem procurar qualquer espécie de integração ao seu sentido unitário? [...] Que adiantaria possuir a obra “unidade” se essa unidade fosse largada à mercê de um local onde não só não coubesse como idéia, assim como não houvesse a possibilidade de sua plena vivência e compreensão?” Para responder a esta dificuldade, Oiticica utilizará diversas vezes uma descoberta intermediária, de contato e afastamento simultâneo do mundo, empregada sempre no limite entre obra e exterior: a velatura. Resulta, talvez, de uma tentativa de manter a transitividade da obra, fundamental à sua poética. Nada ali pode ser interrompido ou tornar-se parte e por isso a borda do trabalho, sua fronteira com o exterior, será sempre uma região delicada e paradoxal. Velar esta fronteira, filtrá-la, deixá-la lá como sombra e promessa mas atenuando e controlando sua presença, como quem vai fechando a persiana, é formalizar em termos próprios esta dificuldade. Isto acaba por reiterar aquela leveza característica que procurei descrever mais atrás, criando um efeito de suspensão, de inconclusão, extremamente produtivo. Entrar num trabalho de Oiticica é acessar uma região fisica-mente difusa, que parece escorregar por toda parte. Algo ali se nega a prender a luz ou o corpo que o percorre – idealmente, as paredes de seu labirinto seriam feitas de gás. Véus, tules, telas de arame, de aniagem, de náilon, folhas de plástico bolha, duratex perfurado, plástico transparente, vidro, água, líquidos coloridos por anilina, esteiras de junco são materiais que ingressam no trabalho de Oiticica a partir dos “Bólides”, ganham espaço com os “Parangolés” e constituem o veículo condutor de diversos “Penetráveis”, em especial dos “Ninhos”, criando um lugar onde a própria transitividade, como acontecia com a fluidez de tons e matizes nos “Núcleos”, é o veículo da permanência, e garantindo assim um quantum mínimo de diferenciação que não chega a emperrar a continuidade do todo.5 Como num sfumatto renascentista, o longe aqui pertence a uma outra categoria do ser, diversa mas, ao mesmo tempo, em nada ameaçadora à cena que se desenrola junto de nós.

8.

A obra inteira de h.o. organiza-se através do adiamento progressivo do mundo desde um centro de pureza onde se instaura um sujeito pleno, balanceado entre seus estímulos e seu repouso. Quanto mais a obra se desenvolve, mais protegido está este sujeito, mais cheio de recursos e de alimento em seu ninho. Este solipsismo objetivo é o motor do trabalho de h.o. – ao mesmo tempo extremamente desinibidor na riqueza de suas conquistas (daquilo que foi trazido para dentro do labirinto) e defensivo em sua arquitetura sem mácula. Ao pensarmos em seu traba-lho, é preciso não esquecer que a fita de Moebius, que concilia exterior e interior, atividade e passividade, ação e adormecimento, e que oferece um emblema tanto para seu trabalho quanto para o de Lygia Clark, é, ao mesmo tempo, um circuito de retorno: “Procuro o Crelazer: faço os planos, começo e recomeço – parece que começo e recomeço não terminam e são o sentido do que não existe e se procura erguer”. Quem a percorre já está 

5. “Através”, um dos mais bonitos trabalhos de Cildo Meirelles, parece explicitar este paradoxo, apropriando-se dele. preso em sua silhueta e andar para a frente é também voltar para trás, já que o apagamento da fronteira entre dentro e fora, próprio desta fita, tem como contrapartida o seu círculo torcido, que volta e volta – a operação de Lygia Clark, de “abrir” a fita, apenas multiplica este circuito quase ao infinito. É assim que, desde os “Relevos espaciais”, numa identidade bipartida, o impulso de enfrentar o mundo é simétrico ao de afastar-se dele; o impulso de desmistificar a arte, propondo-a como atividade e não como contemplação, é simétrico ao de tomá-la como substitutivo às impurezas do mundo. Se dentro e fora procuram coincidir alucinadamente é apenas porque nos foi oferecido, ao mesmo tempo, um circuito contínuo para os nossos passos. O torpor algo hipnótico (como no Cinéma/Anémic, de Duchamp) que atravessa, em doses diferentes, todo o trabalho pelo menos desde os “Núcleos”, tem origem neste retorno que ecoa ao fundo.

Num país que não oferece resistência nem medida às proposições da cultura, o projeto de h.o. foi positivar esta indiferença através da invenção de uma contrapartida cultural, mas transformada em coisa efetiva, em mundo real. Diversamente do que se passou com nossos modernistas da Semana de 1922, talvez já estivessem formadas em meados do século as condições para um teste objetivo, para uma prova da capacidade propositiva da obra de arte (daí a ausência de qualquer efeito de distanciamento em seu trabalho, de qualquer ironia, ou boutade de cunho oswaldiano), que procura construir o reino dos fins no interior da vida injusta e desencantada, contrapondo à desordem ruidosa e desagregada do mundo exterior a suspensão adormecida de seus “Penetráveis”. Lá, a pureza (como diz o “Penetrável” Tropicália), de fato é um mito. Descansamos dentro deles como descansa o bandido assassinado em seu silêncio heróico (a frase está no “Bólide” Homenagem a Cara de Cavalo). A vida aqui parece esperar por nós em toda a sua potência adormecida. Isto acaba equalizando-a por cima, já que o absoluto passa a estar em todo e qualquer lugar. Talvez o exercício experimental da liberdade, de que falava Mário Pedrosa, não seja mais do que a procura contínua deste absoluto, que se esconde exatamente por estar em toda parte, à espreita num letreiro, num boteco, num pedaço de asfalto, num bilhete de amor, pronto para ser incluído na arquitetura da obra. Mas por trás do tule laranja que nos protege, por trás deste sol interno que estamos esperando, é sempre possível perceber, cegante, amarelo e desvairado, os rastros de um sol de verdade.6

Folha de São Paulo, 7 de agosto de 1995, Jornal de Resenhas. Resenha do catálogo da primeira exposição abrangente do trabalho de Bruce Nauman nos eua – Neal Benezra e Kathy Halbreich (orgs.) e Jean Simon (ed.), com textos de Paul Schimmel e Robert Storr. Minneapolis: Walker Art Center, 1993 –, realizada entre 1993 e 1995 em quatro dos principais museus norte-americanos (além de uma temporada no Reina Sofia, de Madri). 

1. Rodrigo Naves, A forma difícil. São Paulo: Ática, 1996, p. 20. 

2. O xamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase. São Paulo: Martins Fontes, 1998. pp. 17 e 171.

3. “O êxtase não permanece possível senão na angústia do êxtase, no fato de que não pode ser satisfação, saber apreendido”, Georges Bataille, L’expérience interieur. Paris: Gallimard, 2006 [1943-1954, ed. original], p. 66. Vale a pena ler o livro de Bataille como uma longa conversa com os “Parangolés” de Hélio Oiticica. Lá, a consciência da cisão, em forma de paradoxo, entre o êxtase mudo e o livro sobre o êxtase, que se está lendo, imprime sua marca em cada página. 

4. A expressão é de Hesíodo, Os trabalhos e os dias, verso 181.

5. “Através”, um dos mais bonitos trabalhos de Cildo Meirelles, parece explicitar este paradoxo, apropriando-se dele.

6. A frase “À espera de um sol interno”, de Hélio Oiticica, que serve de título a este ensaio, encontra-se no catálogo da exposição Hélio Oiticica, no Witte de With, Jeau de Paume, Fundação Gulbenkian, Walker Art Center e Centro de Arte Hélio Oiticica, 1996. Todas as citações de textos de h.o. são tiradas deste catálogo ou de Aspiro ao grande labirinto, de Hélio Oiticica, Wally Salomão (org.). Rio de Janeiro: Rocco, 1986. Devo ao livro de Celso Favaretto, A invenção de Hélio Oiticica, São Paulo: Edusp, 1992, quase todas as indicações de data e título das obras, bem como algumas periodizações gerais.