Fooquedeu/2016

Ao longo de quase um mês, durante a montagem de sua exposição “O Direito à Preguiça”, no Centro Cultural Banco do Brasil de Belo Horizonte, o artista plástico e escritor Nuno Ramos começou a tomar notas da experiência que vivia. Os registros ganharam volume, resultando num diário pouco convencional em forma de fragmentos, alguns deles encadeados, outros não. Transitando entre a escrita artística e a prosa de ensaísta, o autor mistura relatos cotidianos com impressões sobre o próprio trabalho e o lugar do artista no Brasil atual. Trata, ainda, da crise política e do impeachment, além de obras, autores e cenas que ajudam a revelar o país – do JN a Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro; de O Som ao Redor e Boi Neon a Machado de Assis

MONTAGEM – A energia maior do trabalho vem de não estar pronto, no sentido de querer estar pronto mas não conseguir, de passar perto disso mas nunca concluir. O aforisma de Kierkegaard (“Se eu tivesse de desejar alguma coisa não seria riqueza e poder, mas a paixão pelo possível”) poderia ser aplicado aqui. Mas a própria arte, depois de pronta, é que seria este sentimento do possível, fixado num sistema de signos que se abre novamente a cada geração. Precisa, para isso, apresentar-se minimamente num gênero, num contragênero, numa ausência de gênero, numa moldura ou edição. Precisa definir-se de alguma forma (a morte do autor carrega consigo essa espécie de finalização). No meu caso, no entanto, sinto a montagem como o momento vertiginoso e apavorante deste sentimento – o possível está ali, imparcial e inteiro, cruel em sua potência, sem oferecer garantias, podendo ainda se voltar contra mim, ou seja: fazer com que o trabalho quebre, caia, machuque alguém, não funcione, estoure loucamente o orçamento ou, pior do que tudo, fique horrível. Depois de pronto, parece de alguma forma calmo, até equilibrado, e acabo me relacionando razoavelmente bem com ele, sem gostar demais nem de menos. Sinto carinho e certo desapego pelo que já fiz. Enquanto está sendo feito, no entanto, parece um bicho traidor e amoroso, me sacudindo na insônia, abrindo a perna e me apunhalando, prometendo e condenando, piscando e soltando a peçonha. Quero me livrar dele, terminá-lo, mas também quero que continue assim, incompleto.

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CUIDADO, CHÃO MOLHADO – Há bedéis difusos, confusos, espalhados por toda parte. Bombeiros musculosíssimos, de braços cruzados, vigiam nosso trabalho como se fôssemos suicidas renitentes. Não podemos subir mais de 2 metros no andaime nem na escada; não podemos usar estilete nem tesouras; se resinarmos alguma coisa teremos de vestir máscaras enormes, asfixiantes. O antigo bedel disciplinador da primeira adolescência, que interrompia nosso cigarro, nossa maconha e nossa punheta, procriou como uma família de coelhos. Mas não fala mais em nome dos valores da instituição – fala em nosso nome, ou de nossa própria segurança. Essa é a astúcia, porque no fundo tem medo de nós. Há uma judicialização da vida privada, minuciosa, genérica, pairando sobre todos. A vida alheia virou oportunidade econômica – podemos processar a instituição que se esqueceu de colocar uma placa “chão molhado” (que naturalmente ninguém lê) no banheiro, ou que nos deixou subir numa escada com 2,01 metros de altura, e arrancar uma boa grana dela. Os bombeiros estão lá para evitar isso, não para zelar por nós. Trata-se de um circuito, de um raciocínio, um estilo especificamente norte-americano, onde o dinheiro atravessa a intimidade das pessoas em níveis dificilmente aceitáveis em outros países. Curiosamente, no entanto, a expressão shit happens vem de lá. Mas a merda nunca mais aconteceu, nem acontecerá – ao menos não no circuito higienizado, com alto nível de visibilidade, onde vivo e onde meu trabalho vive. Aqui, é como se não houvesse acidentes. Acidente: o sistema da causalidade aparentemente interrompido, com uma nova causalidade sobreposta à comum (Hume: “A queda de um seixo pode, de acordo com tudo o que sabemos, extinguir o sol”), ao mesmo tempo arbitrária (por isso o acidente parece acidental) e necessária (por isso o acidente parece fatal). Um não sei quê, portanto, casual e divino, num circuito que bastaria a si mesmo – aconteceu e pronto – e que hoje tentamos a todo custo descartar. A pedra caiu, a cabeça estava exatamente ali, debaixo dela – que fatalidade, que destino, era a hora dele. Não: hoje é sempre culpa de alguém e esse alguém deve pagar (literalmente) por isso.

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BRUXARIA – Às vezes, é o próprio morto quem paga: fumava, bebia, levava uma vida sedentária, trabalhava de mais ou de menos, não praticava nenhum esporte, parou o remédio, era muito estressado. Se morreu, a culpa é sua, e se tivesse tomado cuidado, não morria nunca. Para o povo Azande, no livro famoso de Evans-Pritchard, [1] também não há acidente, mas não é o morto o culpado, e sim o feiticeiro. Todo acidente é feitiço, exigindo uma longa série de contrafeitiços – o que instaura uma nova causalidade, patrocinada desta vez pelos homens, não pela natureza. Há estranhas técnicas para descobrir os bruxos responsáveis por tais “acidentes”. “Nos mortos, a substância-bruxaria é descoberta pela abertura do ventre. Uma autópsia é realizada em público, à beira do túmulo. Eles detectam sua presença pela forma como os intestinos saem do ventre.”

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QUAL O NOME DELE? – Porém (“Ai, porém…”), semana passada um sujeito morreu eletrocutado na fonte da Praça da Liberdade, bem em frente ao prédio onde estamos. Tomava banho e pisou num fio desencapado. Vi, da janela da sala onde montava um trabalho chamado A Hora da Razão, feito a partir da canção de Batatinha e J. Luna (“Se eu deixar de sofrer…”), um revezamento de bombeiros ou policiais socando o peito dele. Deste lado, a canção soava o tempo todo, na voz de Nina Becker, Clima e Romulo Fróes. Do lado de lá, esmurraram por uma hora e meia (é o protocolo) o peito de um infeliz eletrocutado. Olhei só uma vez pela janela, mas via na cara das pessoas ao meu redor que a coisa continuava e continuava. A tarde caiu e o sujeito ali estendido, o peito recebendo pancada. Depois jogaram um pano pardo sobre ele. Ambulâncias paradas. Homens enormes. Pombos. Não podiam mesmo fazer nada. A não ser ter encapado a droga do fio. Disseram que era argentino e morava por ali. Dias antes, embora estivesse com o celular na mão, um cara perguntou em portunhol se eu queria comprar cartões de telefone. Será que foi ele? Parece que pisou no fio de alimentação das luzes da fonte. Se tivessem tentado ajudar, os outros homeless que se banhavam também teriam morrido. É próprio do corpo transmitir – vírus, tesão, corrente elétrica. Com uma madeira, afastaram afinal seu corpo, ainda grudado ao fio. Deste lado da vida, não podemos subir numa escada de 2,01 metros de altura e há vinte bombeiros vigiando, como se fôssemos bebês; na praça em frente, um fio desencapado mata, com toda a naturalidade, um sujeito com sotaque argentino, e só há bombeiros depois do óbito. No fundo, é isso em toda parte – um circuito higienizado onde a seiva jurídica penetra a vida privada; onde tudo, como nos Azande, é feitiço e deve ser vingado. Um outro, muito maior e abrangente, onde a shit, afinal, continua rolando solta, sem judicialização nenhuma, e a cadeia causal da responsabilização é logo interrompida. Nunca vou saber o nome dele.

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OBRA BOA, OBRA RUIM – É isso então ser artista? Estar cercado de gente e ter direito a certa arbitrariedade do eu? – ao gosto ou à falta dele, a respostas cortantes como as que dou às vezes? Devia ser o contrário: artista é quem transfere, para usar o termo psicanalítico, mas transfere absolutamente tudo, a ponto de não haver retorno nem identificação. A obra boa é potente demais, e deixa quem a fez com os bolsos vazios. Quando é fraca, permanece pousada como uma mariposa no ombro do autor. A obra ruim é sempre palpável. A boa, não. Sabemos que ninguém responde por ela, que a projeção de seu futuro assombra e ilumina (tornando leve e fluido e feliz) o presente. A obra ruim está definitivamente ali. Ei-la. O artista tem direitos sobre ela. A obra boa está numa diagonal, vazando a sala e em certo sentido o próprio tempo. Daí o rufar de seu tambor, presente mas já longínquo. Neste sentido, seria preciso ter comiseração, e não repugnância, pela obra ruim, por tudo o que nela se parece ao mais comum e caído. Mas há uma grande injustiça em sua própria existência, pois durou mais que seus contemporâneos (tanto o público que a viu nascer quanto os objetos de sua época). Sobreviveu a eles quando devia ter passado junto, recebendo a mesma terra ou a mesma cremação que eles, já que carrega igual clausura física e corpórea, sem asa nem fuga. Daí a repugnância que inspira.

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DESCANSE EM PAZ – A única coisa que a obra verdadeira entrega exclusivamente ao artista não é o seu sentido (artista explicando a própria obra é sempre complicado), mas o aroma de sua sucessora – a próxima obra, que necessariamente a falseará e relativizará. Essa traição é a sina biográfica de todo artista, seu beijo de Judas – não se deter naquilo que produziu. Por isso, do ponto de vista da obra (como do mercado de arte), artista bom é artista morto. Seu preço sobe. Suas obras podem descansar, fixando-se, hierarquizando-se.

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COBERTOR – Pode não haver luz na melancolia; pode ficar tudo insípido e os passos escassearem, diminuindo o alcance e a frequência. O próprio batimento cardíaco pode ralentar-se e o horizonte aproximar-se, como um muro que nos alcança pela frente. Pode a alegria parecer ridícula debaixo de uma camada tão espessa (a melancolia é sempre um cobertor, um feltro, que silencia os agudos mas não os graves). Nossa vida pode parecer amaldiçoada desde o nascimento ou ainda mais, desde os mamutes ou desde os trilobitas. – Sim, pode, mas, ainda assim, alguma certeza a melancolia tem. Um foco, uma concentração diamantina naquilo (estar melancólico), um despreocupar-se com milhares de chamados e deveres, uma redução (uma compressão, mais exatamente) de um material gasoso ao estado quase sólido, que nos dispensa de atender telefones, de ser simpáticos, de falar alto. É isso o que tem de atraente e, no limite, de acolhedor.

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ANCESTRAIS – Há quanto tempo estou aqui, arrastando meus pés por estas salas? Há dias caminho em corredores interligados. Sei que as paredes estarão aqui depois de mim, depois que desmontar a exposição e retirar tudo o que ponho agora. As salas das instituições estão para as obras como ancestrais vindicativos, cunhados ou pais mortos, cobrando seus direitos. Os tacos limpos, o branco da pintura, a dobradiça da porta, tudo resiste, ignora a potência do que é mostrado. Preciso das paredes, do branco delas, mas gostaria de ameaçá-las, derretê-las, esticá-las.

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PURGATÓRIO – Há fantasmas no andar de cima, fechado ao público há anos. Foi depois de abrir suas janelas para ventilar a fumaça da panela de breu que o homeless argentino (nunca vou saber o nome dele) morreu na praça em frente. Mas há fantasmas também entre nós – os funcionários. O nome é irônico, pois, isso é óbvio, funcionários nunca funcionam muito bem. Carregam, como os bombeiros que nos espreitam, uma temporalidade exagerada. Fitaram demais alguma parede branca. Sofreram a radiação de uma hora neutra, alienada, na qual nada brilha, nem acontece, nem ameaça, nem dispara uma válvula que catapulte alguém. Misturam-se com naturalidade ao tempo da poeira, da brancura das paredes e da palidez da luz tubular, quase magenta. Tudo – o café meio morno, o bom-dia pela manhã – parece esperar o fim do mês com seu salário, e detalhes mínimos tornam-se incrivelmente poderosos. Sorriu? Assinou? Pagou? O livro do desassossego sossegou. Insetos tombaram no chão e foram varridos. O sorriso do chefe perdoou todos os erros. A ansiedade de quem vem de fora, recebida com certo alívio e até alegria, não chega a abalar ninguém, pois não pertence à mesma duração destes imortais entediados, contemplando nosso pobre impulso de vida. Alguma coisa do purgatório dantesco, com suas punições suportáveis (em contraste com as do inferno, intoleráveis), pode ser encontrada aqui. Há uma inutilidade difusa, um fazer impotente, que recai sobre si – daí o tom rebuscado e formal dos e-mails institucionais, nos quais fantasmas celebram-se, cumprimentam-se, respeitam-se, procurando disfarçar o castigo de, mais uma vez, enviar aquele mesmo texto inútil. O historiador Jacques Le Goff diz que a invenção do purgatório instaura um acontecimento entre a morte e o juízo final – é depois de morta que a pessoa passa a merecer o céu ou o inferno. Será isso o que esperam aqui – a sentença depois da morte? E precisam de nossa ajuda pra isso?

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FOOQUEDEU – Só descanso da exaustão de produzir muito produzindo mais. Escrevo isto aqui, penso em outros trabalhos, fujo à possessão me deixando possuir. É estranho, porque até aqui a montagem parece bem, e tenho o sentimento de controlar o risco de tudo dar errado (por exemplo: o andaime-órgão, que dá título à mostra e consumiu quase todo o orçamento, simplesmente não tocar); mas tudo parece errado também, pois, como um viciado, preciso sempre de mais risco, mais aposta, mais medo, pânico de estar fazendo o que estou fazendo. Na verdade, em situações de montagem, duas frases ficam martelando em minha cabeça. 1) “Nem que seja a última coisa que eu faça” (tipo: topo morrer se conseguir terminar isso) e 2) “Foi o que deu.” Esta última, Mira Schendel me disse pouco antes de morrer. Para animá-la (sua doença foi súbita e galopante), descrevi o melhor que pude, e com admiração sincera, a incrível potência do seu trabalho, e ouvi em resposta esta frase simples, que ela disse sem qualquer falsidade. “Foi o que deu.” Espero estar caminhando, conforme envelheço, da estupidez da primeira frase (no fundo, uma chantagem com a morte, que diminui a morte, entremeada de autocomiseração) para a sabedoria da segunda. Embora redundante, ao modo do famoso “O que não se pode dizer, deve-se calar”, “Foi o que deu” vale pelo que não diz, conformando-se com o que não sabe, pois ninguém sabe o que faz, muito menos o que fez. Mas percebo agora que, se pronunciá-la bem rápido (Mira não faria isso, pois se enrolava nas consoantes), “foi o que deu” fica “fodeu”, ou, mais precisamente, um misto de fuck com “fodeu”. Fooquedeu. Nem que seja a última coisa que eu diga, é exatamente o que quero dizer.

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NÓS – É muito difícil passar mais de meia hora com quem não participa da montagem. Jantares com colecionadores ou curadores ou velhos amigos são especialmente torturantes. Nossa breve comunidade impõe-se a tudo. Minha admiração pela ideia do trabalho enquanto degradação e perda do paraíso – presente, por exemplo, no livrinho de Paul Lafargue que dá título à exposição – cessa aqui. Deve haver um Eros forte no trabalho, para impor tamanha ligação, espécie de comunicação secreta que faz rir de quem não está dentro. Sim, nós sabemos algo que eles não sabem. Só nós sabemos quanto aquela perua envelheceu; quanto sua plástica deu errado; quanto é sinistro o chefe daquele funcionário; quanto o misto-quente deste boteco é horrível. Sabemos quanto estamos loucos, a altura do canyon que estamos escalando e amanhã, quando nos encontrarmos às oito da matina (são duas da madrugada, agora), continuaremos sabendo. Além do mais, ninguém terá passado por isso antes de nós. Este nós, pela brevidade (só dura até o final da montagem), tem uma aura, como a de um grupo de cientistas descobrindo a vacina da malária ou um bando de motoqueiros chegando a uma cidadezinha do interior em suas Harley-Davidson. Ninguém está sozinho e alguma coisa igualitária parece autêntica. Há decisões na montagem que não são minhas, ou em que perco. Claro que certo café-com-leitismo me envolve, e a mais ninguém. Tenho direito meio tácito a vetos, pequenos chiliques do meu gosto pessoal, a coisas inexplicáveis que me afligem e que se imporiam sob a regência da Autoria. Mas é incrível como são raros. O trabalho vai sendo coberto, como por um fungo, pelos palpites de quem monta comigo.

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PREFERIRIA NÃO FAZÊ-LO – Mas há um Bartleby para cada capitão Ahab – é incrível que os dois livros tenham o mesmo autor, que terá inventado, ao mesmo tempo, Jackson Pollock (Moby Dick) e Donald Judd (Bartleby), as duas pontas opostas da cultura norte-americana – a da potência e fusão interiorizante e metafórica com a natureza, e a da impotência e convívio metonímico entre as faces externas dessa natureza (empirista, no limite). Como um raio intocável, quase budista, ao qual não se pode contestar nada, o “preferiria não fazê-lo” do personagem escriturário de Herman Melville cava cada vez mais fundo a sua estaca. É ele que, mais cedo ou mais tarde, dará fundamento ao argumento ecológico (“Não crescerás, não consumirás, não gastarás a água com que escovas os dentes”). Não se trata do “fracassar de novo, fracassar melhor” becketiano, mas de certa brecha no dia, diagonal na sala, intervalo no som de um sino, que a neutralidade da frase oferece. Segundo ela, tudo podia ser diferente. “Preferiria não fazê-lo” tornou-se a última negação do capitalismo.

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O DIREITO À PREGUIÇA – O sono é um deus travesso que, durante o dia, invade separadamente cada um de nós. A cara de cansaço revela a intimidade do possuído, como se fosse flagrado num orgasmo, num esforço intestinal. É estranho encontrá-lo, minutos depois de sua soneca, estendendo pacatamente uma trena.

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CANALHAS – A Praça da Liberdade, em frente à nossa montagem, onde morreu o homeless argentino, é o reduto daqueles favoráveis ao impeachment. Guardei meu carro ali perto. Saio caminhando por ela, ao fim de mais um dia de trabalho, e a votação na Câmara começa. Sinto-me infiltrado, como um espião na Guerra Fria. Procuro características que me denunciassem. Quase torço por isso, ser delatado por algum acidente físico, alguma expressão no rosto, algum detalhe na vestimenta – como se não encontrasse todos os dias essas mesmas pessoas nos restaurantes que frequento. Mas olho pra elas como se fosse a primeira vez. Fico lembrando das pessoas razoáveis que conheço favoráveis ao processo, mas não consigo afastar meu nojo, minha repulsa completa, sem objeto determinado, pela totalidade daquilo que vejo. Em especial, percebo logo, pelas cores da bandeira, aquele amarelo-cheguei que arrasta junto a memória futebolística, preciosa para mim. Por ser mais próximo, parece pior do que no final da ditadura militar (época que ainda peguei), pois não se trata agora de um coronel com suas medalhas, de um reco com cabelo espetado, mas dessa gente loura e barriguda – aí está, meu nojo já equalizou tudo. Para ele, todos nesta praça são ricos, brancos, barrigudos, louros e cafonas. O verso dos Titãs, “nenhuma pátria me pariu” (quase um “vá à puta que o pariu”), vem à cabeça. Tento um olhar mais vago, antropológico, pleno de curiosidade e, no limite, comiseração. Mas não dura, não pode durar. Resolvo caminhar até a praça da Estação, a poucas quadras da Praça da Liberdade, onde aqueles contrários ao processo melancolizam-se. Há música boa, batuque, cerveja, e, principalmente, gente conhecida. Me sinto melhor ali, mas ainda assim infiltrado. Também me repugna a cor vermelha, me repugna haver uma cor dominante, e o pateta do microfone é particularmente pateta. Devia ter ido direto pra casa. Não consigo superar a dicotomia extrema entre cores, praças, cabelos, nem enquadrar-me nela. A não ser quando, de volta à Praça da Liberdade para pegar meu carro, vejo no telão Jean Wyllys chamar os deputados de “canalhas” e o público verde-amarelo pular na frente da imagem, gritando “Bicha!” (essa eu não ouvia desde o ginásio) e brandindo muques (idem). A palavra “canalhas” é a primeira coisa que verdadeiramente me toma, com aquele alívio de sentir afinal a vida e o verbo coincidirem. Minha pessoa cabe agora numa palavra. Canalhas.

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PARECE MUITO – Eu nunca vi isso que estou vendo. Nunca vivi isso que estou vivendo. Por que então tudo parece falso e redundante? Por que não sinto espanto pelo processo televisivo diário? Por que parece um filme malfeito, com atores especialmente mal dirigidos? De onde vem este déjà-vu infindável se algo novo, mais profundo e gritante, está acontecendo? Mas o que é que está acontecendo, afinal? Não será uma enorme crise da Semelhança, onde os opositores já não conseguem distinguir-se uns dos outros? Não virá daí o bafo monstruoso que abre o jornal diário – a identidade proibida entre o que deveria gerar contraste, como os gêmeos-tabu de tantas culturas? Essa identidade não parece, em sua origem, cômica ou bufa, e vai aos poucos se tornando enjoativa e medonha? O nojo que sinto será então de mim mesmo?

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VERIFIQUE SE O MESMO – Há uma ideia ótima em Metafísicas Canibais, de Eduardo Viveiros de Castro: o livro é apresentado como a resenha de um outro livro, que ele nunca escreveu. Vou fazer a mesma coisa com um artigo que projetei, mas não consigo escrever. O título seria “Verifique se o Mesmo…” e começaria analisando essa estranha frase, presente ainda na porta de tantos elevadores (até pouco tempo atrás, estampá-la era lei, em São Paulo), e que gerou até página no Facebook. “Verifique se o mesmo encontra-se parado neste andar.” Quem? O mesmo. Parado, ali, te esperando. Neste andar. Acho a melhor definição do que vem ocorrendo no Brasil, com seu misterioso sujeito (o Mesmo) suspenso num poço tétrico. A indiferenciação intolerável entre direita/esquerda, PSDB/PT, amarelos e vermelhos, desperta uma energia vácua e fratricida que não tem para onde ir, a não ser para dentro – é intrinsecamente palaciana, burocrática, conspiratória, golpista. Quanto maior o esforço e a violência, e também o nojo mútuos, menor a diferenciação real. Pairando sobre todos, fugindo ao jogo e a qualquer negociação propriamente política, a monarca Macroeconomia mantém-se intocável (Dilma tentou tocar e deu com os burros n’água), como uma grande chantagista tratando a Política e os políticos, os desejos políticos, como adolescentes inconsequentes, merecedores de um grave pito. Diante disso, todos sabem o que fazer, e no fundo fariam o mesmo, e Joaquim Levy é o mesmo desse mesmo – mas a vida lá fora continua rugindo e escapando e brincando com o imponderável. A rainha Macro (como a de Alice) só manda cortar cabeças, sem ter a menor noção de que também é uma carta de baralho (e ninguém tem a coragem de lembrá-la, como fez Alice). Diante disso, a política acabou sentindo-se à vontade para se mostrar como sempre foi, agora sem tanta vergonha nem disfarce: um amontoado de poderosos empoderando-se, sem ambição suprapessoal nem projeto. Neste artigo que nunca escrevi, A Violência e o Sagrado, de René Girard, viria em seguida a esta apresentação geral. Depois de fazer muitas ressalvas ao livro e ao catolicismo do autor, mostraria que, como uma espécie de anti-O Anti-Édipo (foi publicado no mesmo ano da obra de Gilles Deleuze e Félix Guattari), o livro coloca a cópia e a mimese numa posição central, como uma fatalidade, digamos, ontológica, num papai-mamãe anterior ao papai e à mamãe. Nada de passeio esquizo aqui, nada do menu terapêutico da psicanálise. Para Girard, o desejo é mimético em sua estrutura mais íntima e fatal: ele só faz copiar. Não há cena edipiana, nem compensação pela castração, nem Beethoven, nem superego. Numa espécie de hiper Totem e Tabu, os desejos copiam-se infindavelmente, acumulando rancor e ressentimento até um terceiro termo, o bode expiatório, entrar em cena, chamado pelos adversários miméticos para neutralizar as tensões a partir de seu sacrifício, acalmando afinal as coisas e reiniciando a série. Para Girard, toda crise vem dessa acumulação inevitável da semelhança, e não da diferença – daí o papel sempre monstruoso que têm os gêmeos em tantas culturas. Lembraria então a posição sacrificial em que acabou encalacrando-se o governo Dilma, mais especificamente ela própria, e como o sacrifício-impeachment restituiu imediatamente algumas diferenças (“Tá vendo?!”…). Faria, então, uma longa digressão, mostrando o que Esaú e Jacó, livro sobre gêmeos, representa na obra de Machado de Assis, com o narrador tendo de duplicar-se (o livro é do Conselheiro Aires ou do próprio Machado?) para dar conta da falsa diferença entre os irmãos, ou entre o Império e a República, que eles parecem simbolizar. Compararia o bem-sucedido Mataram Meu Irmão, documentário de Cristiano Burlan – onde a identidade do irmão assassinado, que o filme procura reconstruir, aparece ora como um amigão-que-apronta ora como um traficante-monstro, sem deixar que o espectador decida-se entre os dois extremos –, com o malsucedido O Irmão Alemão, de Chico Buarque, em que a procura por Sergio Günther, o “irmão alemão”, parece aprisionar, em sua reconstituição familiar meio lacrimosa (e a origem documental-biográfica, como aquele “baseado em fatos reais” dos filmes hollywoodianos, só piora isso), a potência imaginativa que o livro logo desfaz. Isso tudo sem deixar de comentar a linda canção Morro Dois Irmãos (do mesmo Chico), que finalizaria esta parte do meu artigo. Num momento de sutileza, sugeriria que nosso maior gravador, Oswaldo Goeldi, não produz propriamente cópias em boa parte de sua obra gravada, mas originais levemente diferenciados, e o sentido profundo desse detalhe. Tentaria então mostrar – e esse seria o ponto mais ambicioso de todo o texto, pois citaria um outro artigo meu, este efetivamente escrito, “No palácio de Moebius”, e publicado nesta piauí – tentaria mostrar como o circuito em forma de anel de Moebius de grande parte de nossa melhor arte espelha esse circuito em retorno de nossa vida social, onde o Mesmo está sempre diante de nós. Aqui, traria Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro, para o centro do meu texto, comparando-o com Tristes Trópicos, de Lévi-Strauss, apontando uma cifra negativa, na forma de retorno, presente em ambos. E, pondo a bola no chão, procurando não esquecer de tudo o que efetivamente melhorou no Brasil (a distribuição de renda, a maior presença de excluídos étnicos, o acesso ao ensino superior), compararia dois ótimos ensaios que saíram sobre o Brasil recente, o de André Singer, Os Sentidos do Lulismo (“O PT mudou tudo, continuando o caminho aberto por Getúlio”) e Imobilismo em Movimento, de Marcos Nobre (“O PT nunca fez mudanças estruturais, o PMDB é nossa verdade profunda”), discutindo minúcias mas optando pelo segundo. Por fim, concluiria: “É preciso fazer o que aquela frase (o título do meu artigo) efetivamente nos manda fazer: subir no elevador, MESMO que ele não esteja lá.” (“Mas de repente/Etelvina me chamou/tá na hora do batente//Foi um sonho, minha gente.”)

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JN, 16 DE MARÇO DE 2016 – A verdade é que me defendo do horror (o avesso da tal “paixão pelo possível”) projetando dramaturgia. Tenho esse sentimento, em especial, quando vejo o Jornal Nacional, cujos locutores lembram bonecos com uma mola entre o corpo e a cabeça, que parece sempre grande demais, como num teatro de marionetes (quando ficam de pé, e hoje sempre ficam de pé, parecem achatados no chão). Adoro erros de dicção, gafes, câmeras que entram errado, repórteres paralisados em algum planeta que só a falha tecnológica alcança. Isso não me parece cômico, mas uma espécie de revelação – como aquele barulho da bailarina ao cair sobre o tablado depois de um lindo salto, a que João Cabral alude numa entrevista, como se revelasse a verdade da dança. Quando Moro divulgou as gravações entre Lula e Dilma, além de tantas outras, o JN tornou-se um prato cheio. Liam ao vivo o pãozinho quente das transcrições que tinham acabado de chegar (as gravações entre Lula e Dilma foram liberadas naquela mesma tarde), mostrando excessiva intimidade, dada a pressa, com a matéria que tinham nas mãos e não no teleprompter (a história dos vazamentos é tão interessante quanto a do próprio impeachment, mas duvido que seja escrita). Sem perceber, transformaram-se, ao longo da transmissão, em atores e não locutores, num ato falho memorável. Transpondo a fronteira entre narrar e atuar, já não liam – interpretavam, entoavam, faziam mesmo certa mímica facial, sem aquela distância, falsa ou não, que sempre encenam, e que a mancha branca na cabeleira de Bonner, à Susan Sontag, parece avalizar. As dificuldades de timing, pequenas falhas de áudio, entradas na câmera errada acentuavam isso. Haviam perdido a segurança de sua tribuna e aquele aquário platinado parecia parte integrante da ação que pretendiam narrar de longe. Sem que percebessem, era a passagem da imprensa, e da Globo em especial, a um front bem mais explícito, ativo e parcial, que estava sendo encenada (a Veja, de tão panfletária, não precisa encenar nada).

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BOI NEON – O Brasil profundo saiu das classes populares, dos cafundós, da geologia severa da seca sertaneja, euclidiana, ou dos rios amazônicos, e instaurou-se em alguma coisa economicamente rica, estranhamente religiosa, violenta e cara de pau, inoculada em alguma cidade do interior do Paraná, de São Paulo ou do Rio Grande do Sul. O Brasil profundo são aqueles deputados falando em família e em Deus, o boliche que jogam, a vida impoluta que têm (Machado de Assis sempre soube disso). As novelas da Globo tratam até de viciados em crack, mas não desses virtuosos, ou somente de modo muito caricato. Temos uma incrível dificuldade para representar nossa classe dominante, como se fosse perigoso chegar perto. As cenas daquela festa em Terra em Transe, em que Danuza Leão aparece, são patéticas. Há um erotismo sem Eros, uma sedução que não seduz, um “são todos uns devassos” genérico e bobo – será que os ricos ficaram tão isolados que não sobrou ninguém sequer para zicá-los? A mesma coisa num filme mais recente, Que Horas Ela Volta?, em que o pai de família burguês não tem coragem para declarar até o fim seu amor pela filha da empregada – tudo não passa de uma “brincadeirinha” e uma das grandes cenas do filme, em que ajoelha diante da “invasora”, acaba antes de começar. O filme tem um inimigo, mas, curiosamente, não consegue interessar-se verdadeiramente por ele, que faz papel de deprimido e, no limite, de coitadinho. O mais emocionante do filme não está onde gostaria (na potência da filha da empregada), mas na reprodução, por Regina Casé, do discurso do opressor, numa estranha servidão voluntária. Mais do que a personagem da filha (que, melhor educada, mais culta e mais inteligente do que os patrões de sua mãe, é a novidade real, pós-Lula, do filme), é a esse conformismo chocante que o filme deve seus melhores momentos. Filia-se, aqui, a uma estranha tradição, que tem em Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, seu momento mais alto. “Mato Grosso quis gritar/mas em cima eu falei:/Os home tá co’a razão/nós arranja outro lugar.” Este “Os home tá co’a razão” no topo da melodia, que me arrepia cada vez que ouço, em seu conformismo e razoabilidade absurdos (“Iracema/Cê travessou contramão”, para citar outro exemplo de Adoniran), é um dos momentos mais pungentes de tudo o que os deserdados brasileiros jamais produziram, numa estatura que beira o coro grego e a tragédia.

A exceção a tudo isso é O Som ao Redor, onde o roteiro dá uma espécie de drible. Tudo o que parecia avanço (o acesso popular aos eletrodomésticos, por exemplo, que ganham novos usos, entorpecentes e sexuais, ao longo do filme) subitamente engata a ré. A violência patriarcal é o verdadeiro assunto do filme, embora só compreendamos isso no (surpreendente) final. Esse pessimismo, que estava tão perto e não conseguíamos enxergar, acaba criando um consenso, uma “razão universal” – a da violência e da vingança – partilhada entre as classes, que podem por isso ser retratadas mais próximas, sem tanta caricatura. Apenas no final do filme é que percebemos: era essa a chave de certa proximidade entre elas, não o acesso ao crédito e ao consumo. O arcaísmo é o que têm em comum, precipitando-se num retorno súbito, ironicamente comemorado pelos fogos de artifício, que mimetizam tiros. Em vez de olharem para a frente (como em Deus e o Diabo na Terra do Sol, por exemplo, no qual o assassinato do Coronel abre caminho para a libertação de Manoel), a violência e a vingança olham para trás – mas criam, por isso mesmo, um solo comum. A cena entre os vigias matadores e o Coronel que será morto é quase serena. Parece que tinha de ser mesmo assim. Ao matarem-se, não por disputas atuais, mas arcaicas e imóveis (a vingança, como a Medusa, petrifica tudo), ricos e pobres falam enfim como iguais, e quase se entendem. A violência restitui seu patrimônio comum: o imobilismo.Boi Neon, de Gabriel Mascaro, oferece uma terceira via, correndo por fora e deslocando a questão. Ali, todas as oposições parecem insuficientes – as de classe, as de gênero, as geográficas, o rural e o urbano, e até mesmo as de espécie (entre bicho e gente). Uma dispersão de fundo vai tomando conta do filme. Apenas enunciados, seus dilemas desaparecem à frente do espectador. A motorista-de-caminhão-mulher; o boiadeiro-costureiro; a policial-vigia-grávida-e-vendedora-de-perfume, enfim, os oximoros do filme, parecem renunciar ao papel estruturante, que ficamos procurando e perdendo o tempo todo: afinal, de que trata este filme? Sua primeira asserção parece ser um apagamento profilático, um desfazer de expectativas que está na contramão da polaridade de Que Horas ela Volta? e também da visão ainda totalizante de O Som ao Redor. Na verdade, em Boi Neon ninguém é de ninguém (como no documentário Mataram Meu Irmão, mencionado antes), as personagens se afastam e se vinculam frouxamente, numa espécie de sonambulismo que atravessa todas as categorias. A trepada final, por exemplo, lindamente filmada, é ao mesmo tempo brocha e erótica, sobrepondo a fêmea-grávida e mulher-vigia ao macho/costureiro/desinteressado-pela-playboy e ecoando ainda a gozada do cavalo, farta de esperma mas de pau meio mole. Fugindo às categorizações, mas sem deixar de enunciá-las, Boi Neon é provavelmente o mais contemporâneo dos três filmes que citei, e o que acessou com mais profundidade a feição recente do país, com sua mão de obra retornando ao mercado informal, seu campo invadido por retalhos urbanos, seus índios com jeans, sua violência difusa, eterna e indiferente, sua natureza cheia de lixo. O Brasil, Terra de Contrastes (título do livro famoso de Roger Bastide) é que parece morrer aqui. As oposições brasileiras não conseguem mais dissonância, nem se harmonizam; não chocam, nem superam o choque. Sobrepõem-se frouxamente, numa errância sem guia nem pertencimento.

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GRANDES VIRTUDES – A corrupção é o tema fácil, mole, doce, que qualquer criança utiliza como não-eu. Difícil é separar um deus do outro, uma família da outra, um bom coração de outro bom coração, um amor filial de outro amor filial. Tudo parece mas nada é, e a lenta aquisição das imensas pequenas virtudes é tudo o que nos resta agora (além, é claro, da tarefa prévia, e quase impossível, que é definir esse “nós”). Isso passa por um trabalho profilático, de separação entre superfícies finas, quase grudadas umas nas outras, como se só pudéssemos comer um doce mil folhas depois de provar cada uma de suas camadas, buscando o perigoso veneno em cada uma delas. Temos de alcançar aquilo que Natalia Ginzburg, num ensaio sensacional, chama de “grandes virtudes”, que “jorram de um instinto em que a razão não fala”, em oposição às pequenas, cujo valor “é de ordem complementar, e não substancial”, resultando “insensivelmente em cinismo ou no medo de viver”. Vale a pena citar longamente (é incrível como os substantivos do trecho a seguir, tão abstratos e próximos à retórica hipócrita, soam, no entanto, palpáveis e definidos): “No que diz respeito à educação dos filhos, penso que se deva ensinar a eles não as pequenas virtudes, mas as grandes. Não a poupança, mas a generosidade e a indiferença ao dinheiro; não a prudência, mas a coragem e o desdém pelo perigo; não a astúcia, mas a franqueza e o amor à verdade; não a diplomacia, mas o amor ao próximo e a abnegação; não o desejo de sucesso, mas o desejo de ser e de saber.” É isso. Nem um milímetro a menos.

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NÃO DURA – O “nós” é o enigma. Não nós, espécie humana, mas uma parcela dessa espécie, que posso admirar e amar por um determinado período. Todo pronome, no fundo, é ocupado brevemente, e é preciso contar com isso, dizer adeus a ele o tempo todo. Nenhum pronome dura. O pronominal, que oculta o nome, que oculta a vida, escorre com ela, está no rio e não na margem. Mas parece que aceitamos isso apenas para a segunda pessoa, quando dizemos Tu, o pronome do ódio e, principalmente, do amor. Sabemos quanto ele é frágil e passageiro, sabemos que a vida é um moinho, vai triturar “teus” sonhos tão mesquinhos. O Eu e o Nós, ao contrário, parecem fixos e enraizados, como se permanecessem ali, esperando por nós (nós, quem?).

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“Nós, quem?” é a grande pergunta nacional.

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OS TRISTES DONOS DO PODER NOS TRÓPICOS – Entre os principais ensaios sobre o país (os outros seriam Casa-Grande & Senzala, História Econômica do Brasil e Raízes do Brasil), Tristes Trópicos (Lévi-Strauss) e Os Donos do Poder (Raymundo Faoro) parecem cada dia mais atuais. Têm, ambos, certa ideia de derrisão e mesmice como motor histórico, que hoje salta a cada esquina. A grande sacada de Lévi-Strauss foi tomar-nos por velhos: “Os trópicos são menos exóticos do que antiquados.” Numa anti-carta de Caminha, nada de país novo aqui, já que o antropólogo, por definição, chega sempre tarde, nas pegadas da destruição que procura evitar, produzindo a biópsia de um enorme defunto que, no limite, carregou em sua própria bagagem. Tomando o índio como núcleo nacional, e não o desenvolvimento inevitável do capitalismo (como fez Caio Prado Jr.) ou a tradição portuguesa (como fizeram Sérgio Buarque e Gilberto Freyre, embora com visões opostas dela), transformamo-nos imediatamente em cacos mal estruturados de uma devastação, madeiras boiando depois de um naufrágio, panelas de ferro da época de Rondon misturadas a arcos e flechas recentes, que não conseguimos compor, muito menos harmonizar. Em tecla semelhante, para Raymundo Faoro o “nós” é um estamento, um grupo burocrático-estatal que sempre esteve lá. Disfarçado em gestão, perpetua-se por trás da luta entre as classes e os interesses, salvando-se sempre, numa “viagem redonda” (é o nome do capítulo final) que retorna infindavelmente ao ponto de origem: o Poder. Pela borda (os índios) ou pelo centro (o estamento), os dois livros narram com pessimismo uma espécie de tragédia imóvel, que não sai nunca do lugar; pela violência antiedênica (Lévi-Strauss) ou pela espessura bolorenta de um parasita incrustado (Faoro), estamos onde sempre estivemos. Nós.

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CARO LEITOR, CARA LEITORA – O tom de Machado de Assis nunca mais se repetiu em nossa literatura, pois é essencialmente o da sutileza e inteligência, do adiamento e controle, dos disfarces e da máscara, e não o da expressão aguda, da fusão com o objeto narrado. Essa porta só se abriu uma vez. Consegue isso, paradoxalmente, dirigindo-se a alguém que parece entendê-lo (o “caro leitor/cara leitora”), com o qual joga o tempo todo, traindo, escondendo, ironizando, falando sério, numa potência cifrada cuja extensão até hoje é difícil circunscrever. Há sempre um leitor inteligente, disposto a enganar e ser enganado, a quem o narrador se dirige ao mesmo tempo que ficcionaliza, como alguém que utilizasse uma ponte que ainda está construindo (“Aires e o leitor ideal são a mesma pessoa”, diz John Gledson). [2] Descobrir Para quem Machado escreve? não é portanto questão externa à obra, ao contrário: foi posta por ela, formando um dos seus eixos principais. Num país em que a literatura até hoje não criou propriamente um público, é um estranho vínculo com esse público que estrutura o livro. Esse destinatário, essa entidade, essa aposta do narrador, é uma das grandes invenções machadianas – partilhando da mesma ironia que envolve as personagens, estabelece um meio onde, como esses vírus de laboratório, a infinita reflexividade do Autor pode crescer e se multiplicar. Ao supor uma cultura e uma recepção que nunca existiram, o narrador ganha espessura inédita, destilando sutilezas, preparando armadilhas, habitando um meio onde seu livro, e é isso o fundamental, já existe para alguém, já se deu a esse público (que, no entanto, é o próprio livro que procura criar), numa estratégia que não seria propriamente póstuma, mas pré-natalina.Sempre penso em Euclides como o oposto complementar de Machado. Se o segundo não parecia acreditar em nada, o primeiro acreditava em tudo. No positivismo, na Academia Militar, na República, na família quatrocentona paulista, na honra, no Estadão, nos jagunços e até na própria mulher. O livro de Euclides é a dramaturgia de uma consciência muitíssimo bem-intencionada, estudada, bem trajada, mas que vai sem perceber se estuporando pelo caminho, diante de um público provavelmente tão crente quanto ela. A empáfia de seu texto, a ambição científica que sobrecarrega cada parágrafo fazem o livro adernar como um barco excessivamente carregado. Mas, de alguma forma, esse movimento apresenta-se claramente, como se o autor nunca escapasse dele, mas o incorporasse num infinito cipoal. Para usar um tema que volta repetidamente, o livro é a múmia de seu querer-ser, o cadáver preservado de um enorme fracasso. Euclides não atribui a seu “leitor/leitora” (e ele os tinha em mira, já que o livro foi inicialmente encomendado por um jornal, alcançando depois um inusitado sucesso de público) qualquer reflexividade ou distância em relação à linguagem que usa, aos fatos que narra, à história pregressa, ao real. Ele é o próprio “idiota da objetividade” (para usar um termo cruel de Nelson Rodrigues, criado num contexto futebolístico) e seu desconhecimento absoluto disso é o que há de pungente no livro. Talvez por isso mesmo, pelo desnudamento involuntário que assistimos a cada página, Os Sertões pareça incrivelmente atual, merecendo uma extensa leitura, que durou quase uma década, por um grupo como o Teatro Oficina. O livro é ele mesmo uma esfinge, tão cerrada quanto o Conselheiro, e acaba demonstrando à revelia aquilo que gostaria de tratar, digamos, cientificamente, partindo de uma tomada panorâmica (A Terra), passando ao plano médio (O Homem) para chegar ao close (A Luta). Nada disso funciona, e a inadequação entre forma e conteúdo, certa impenetrabilidade do próprio impulso literário, o cipoal de relações internas, de ecos e miragens, aliterações, oximoros e antinomias, que se substituem ao real quanto mais o procuram, acabam constituindo, ainda que involuntariamente, a estranha “forma” do livro. O livro é a própria múmia do coronel Tamarindo (nome de fruta), empalada num galho seco, de angico – dura ali, exposto em sua mórbida nudez, para as próximas gerações/expedições. Nós.

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IDIOTA DA SUBJETIVIDADE – Entre as duas alternativas acima, me identifico com a segunda. Acredito em coisas demais – na arte, principalmente, cujo estatuto não consigo pôr em questão, nem relativizar. Me sinto o próprio idiota rodriguiano, só que da subjetividade. É ainda ao meu euzinho que entrego a tarefa de contato e contágio, de epiderme e repulsa, de sedução e nojo. As armas “objetivas” dissolvem em minhas mãos, e minha pobre cultura, pequena e confusa, com suas citações, números e dados, suas frases exemplares e pensamentos profundos, vai-se fundindo e confundindo numa espécie de sopa que os anos engrossam sem por isso deixar mais apetitosa. Passo o dia inteiro me sentido perto de algo inteligente, como uma miragem em que nunca toco, e quando caminho recito pedaços anônimos de frase, de ensaios, de índices de livro, mas sem nenhum conteúdo dentro: “No entanto”, “veja bem”, “seria preciso considerar” são as letrinhas de macarrão do poema de Drummond, boiando nessa sopa, dando continuidade a alguma coisa vácua e fantasmática. A mesma coisa vale para a influência. Deixo-me atrair por absolutamente tudo, como se não houvesse contradição entre os polos atratores. Raramente canto uma canção sem fingir para mim mesmo que sou o autor. Digo bem-vindo aos fragmentos mais disparatados, trabalhos que detestava e que de repente me interessam, como se pudesse sempre começar de novo ou fosse um velhinho acolhendo cachorros perdidos na rua. “Ah, esse eu nunca vi antes”, e pegasse um osso, um resto de arroz, e ficasse assistindo àquele bicho comendo.

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SAMBA DE UMA NOTA SÓ – Não tinha reparado, mas há uma espécie de consciência machadiana, quase excessiva, no Samba de uma Nota Só, de Tom Jobim e Newton Mendonça, que utilizo em meu trabalho. A referência constante da letra à melodia, explicando passo a passo, num didatismo absurdo, cada etapa da canção, cria um efeito entre o lírico e o irônico que talvez não se afaste tanto do tom machadiano. O “caro leitor/cara leitora” já aparece nas quatro palavras do primeiro verso: “Eis aqui esse sambinha”, que de fato tem algo da abertura de Memórias Póstumas de Brás Cubas. A canção é um enorme drible, com a segunda parte pondo em movimento todas as notas que a primeira parece negar. No entanto, esse desfile de notas é associado a “quanta gente existe por aí que fala, fala e não diz dada, ou quase nada”, e a nota só, com sua autenticidade, é que parece valer. A versão em câmera lenta que o andaime-órgão toca infindavelmente em meu trabalho (o Samba de uma Nota Sóóó, parceria minha com Leandro César) parece dar razão à letra, mas sem ambivalência nenhuma, ao transformar a canção inteira no longo apito de um navio, insuportavelmente repetido. O que seria fidelidade a um amor (“Voltei pra minha nota, como volto pra você”) se transforma no uivo de um bicho, ou salva de tiros para um morto.

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ENXERGUE! – Algo na infinita institucionalização da arte contemporânea parece não se ter dado ainda entre nós, a não ser pela borda externa, formal – bombeiros, discursos. Sinto quase sempre que ocupo os museus e as galerias como um alienígena. Negocio suas regras, tento fugir a limites de peso, acessibilidade, restrições etárias, orçamentárias, mas sei que ninguém ali acompanha de fato o que estou produzindo. Certa fama caricata, como uma marca ou um royalty, chega antes de mim, e as pessoas parecem já dispostas a quebrar uma parede, arrancar o teto, derrubar o lustre. Neste sentido, há uma espécie de anticuratorialismo no ar, na contramão do que é dominante lá fora. De novo, certo café-com-leitismo me envolve. O circuito “estamental”, que vai dos museus aos cadernos culturais de dois ou três jornais e a relâmpagos televisivos em horários de vampiro, parece me dar poder. Assim, de certa maneira, o fracasso quase completo de minha carreira fora do país tem uma “dupla torção” característica – de um lado, deprime, de outro, me deixa solto, potente, e sinto que posso muito, e que faço somente o que quero. Lembro de quando meu pai tornou-se professor titular da Universidade de São Paulo. Na banca examinadora estavam Sérgio Buarque de Holanda e Paulo Rónai. Eu tinha uns 13 anos e fiquei excitadíssimo, mas ele me devolveu um gélido “Em terra de cego, quem tem olho é rei”, que me acompanha até hoje. Acho que nunca superei essa frase, e secreta e sacanamente assino todo dia embaixo dela, no que diz respeito à minha própria carreira. Gostaria de ter respondido “Seja mesmo rei!” ou “Enxergue, enxergue!”, mas devo ter feito uma cara inteligente, de quem está acima dessas coisas.

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GHOST – Caminho pelo 4º andar do prédio, fechado ao público há muitos anos. A modorra de uma antiga vida, burocrática e pachorrenta, ainda adormece sob toneladas de pó, e ameaça despertar com minha simples presença. Não teria medo de fantasmas, se tivessem apenas voz. É seu restinho de fisicalidade que me apavora – que sejam capazes de mover pequenos objetos, empurrar alguém num poço, tomar seu lugar depois de amarrá-lo com fios invisíveis (adoro, no filme Ghost, aquelas aulas que o velho fantasma, preso no metrô nova-iorquino, dá ao novo, ensinando-o a mover objetos). É tão pequena a corporeidade dos fantasmas e tão pobre a imaginação em torno deles (as asas dos anjos, os dentes dos vampiros, o partir-se em pedaços dos zumbis), mas ainda assim é ela que me enche de medo. Se tivessem apenas voz, como nas sessões espíritas, acho que me relacionaria razoavelmente bem com eles. Pois quero vozes, procuro vozes, vozes são minha religião. O zumbido do pernilongo em meu ouvido me impressiona, e quando o esmago sinto que perdi um tenor potente, desproporcional ao seu tamanho. O grito de um carroceiro na rua, a voz deformada do carro que traz a pamonha, pamonha, pamonha. Nada me atrai tanto no sexo quanto as vozes progressivamente amalucadas que recebo de volta. Mas vozes também no que não há, nas cadeiras empoeiradas, nos rodapés, no assoalho, em personagens imaginários, restos de frase, súbitos monólogos que nunca sei de onde vêm. Procuro a renda gregoriana desses sopros, cantos, berros, raspar de unhas, palavras, rugidos, grunhidos. Um prédio abandonado é um prato cheio para mim.

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Como é difícil lembrar uma voz.

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Velhice: hábito + orelhas grandes.

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O VENTO NUMA BANQUISA GELADA – Ouça, não sou eu quem pergunta. Não sou eu quem responde. Não sou eu quem sussurra. Colado à parede, sou só espessura; sou altura, colado ao teto da sala. Colado aos tacos do chão sou desejo, não de pele ou de carne, mas de peso. Peso. Mas também o vapor, a dissipação que vai no calor, no raio de sol, na chuva secando no pátio. O mecanismo das esferas, a máquina do mundo, não é nossa mente quem faz, milênios ao pé do fogo espalhando mentiras em mitos redondos, perfeitos. É o tombo, o esfacelamento, a evaporação. O vento numa banquisa gelada. A matéria fluindo, escorrendo, a polpa vegetal (o papel que você apalpa agora) pedindo água para tornar-se polpa novamente. Ouça, não sou eu quem escreve isso aqui.

[1] E. E. Evans-Pritchard, Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande, Zahar, 2004.
[2] John Gledson, Machado de Assis, Ficção e História, Paz e Terra, 1986.

(Ensaio publicado na revista piauí: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/fooquedeu/)